Investigador na área académica para compreender como é que as organizações criam e gerem a relação com os objetivos do desenvolvimento sustentável, Ricardo Zózimo foi um dos portugueses convidados para integrar o movimento ‘Economia de Francisco’, uma reflexão iniciada em 2019 pelo Papa Francisco com jovens economistas e empresários de todo o mundo, com inspiração em São Francisco de Assis. Em entrevista ao Folha do Domingo, aquele professor de sustentabilidade e empreendedorismo na Nova School of Business & Economics explicou no que é que consistiu aquele desafio e explicou a transformação que diz estar a ocorrer atualmente no sistema económico. Entrevista conduzida por Samuel Mendonça.

Foi difícil chegar a um modelo que represente globalmente o que é a ‘Economia de Francisco’?
Não. Não foi porque, apesar de a ‘Economia de Francisco’ se exprimir de maneira diferente em cada sítio do mundo, o que une as pessoas à volta da ‘Economia de Francisco’ é a necessidade de uma economia mais humana e a especialidade da Igreja é a humanidade. E o Papa, nesse aspeto, deu-nos três grandes desafios quando fomos a Assis. Três grandes desafios que têm a ver com o mundo todo: a questão da pobreza… Num mundo onde existem 8 biliões de pessoas, temos 2.8 biliões que são pobres. Como é que nós pensamos os modelos económicos e trabalhamos dentro dos sistemas económicos?…

Num mundo onde existem 8 biliões de pessoas, temos 2.8 biliões que são pobres

E alguns desses pobres são trabalhadores…
Exatamente. A segunda coisa que o Papa nos questionou foi como é que estamos a pensar a integração e a inclusão e das atividades destas pessoas pobres. E depois a questão do trabalho digno. O Papa utilizou esta expressão muito interessante que é «o futuro do trabalho digno». O trabalho está a mudar – nós todos o sentimos no pós-Covid – e a dignidade do trabalho parece que está a diminuir. E o Papa quer acentuar essa tónica de como é que nós estamos a trabalhar para um aumento da dignidade do trabalho. Dignidade do trabalho quer dizer tratar cada uma das pessoas como dignas daquele trabalho. O Papa usou uma expressão muito bonita que foi a de que ter trabalho é uma coisa super-importante para cada pessoa, portanto, temos de tratar isso com uma dignidade muito, muito elevada.

sem economia colaborativa só vamos perder mais dignidade e criar mais pobres

Mas essa dignidade tem vindo a ser perdida ao longo dos anos?
Está-se a perder a dignidade e a humanidade. Portanto, a Igreja quer pôr essas duas dimensões dentro do diálogo. E a terceira coisa que o Papa abordou foi a questão do isolamento. Hoje em dia temos uma economia que promove o isolamento, que as pessoas estejam bem sozinhas em casa. Não temos nada contra a Netflix nem contra a Amazon Prime, mas criámos uma cultura onde as pessoas estão bem sozinhas em casa, individualmente sozinhas. E isso pode ter consequências devastadoras para a economia. Se cada pessoa agir sozinha isso vai destruir a economia colaborativa e sem economia colaborativa só vamos perder mais dignidade e criar mais pobres. Essa experiência está a existir neste momento no mundo.
Estas foram as três grandes lições do Papa. Portanto, não foi difícil encontrar um denominador comum.
Agora, os brasileiros veem isto de uma maneira, os americanos de outra, os africanos de outra, os portugueses de outra, os espanhóis de outra, consoante o seu próprio contexto.
Mas não foi difícil porque a humanidade e pensar como é que tornamos a economia mais humana é que é o nosso foco.

E essa «economia do Evangelho», atenta aos mais pobres e à natureza, que protege o trabalho digno e seguro para todos, é compatível com os novos modelos de capitalismo?
Uma das coisas que vou falar na apresentação é que o capitalismo está neste momento num ponto superinteressante do seu desenvolvimento, pois as pessoas que foram totalmente capitalistas percebem que o modelo se esgotou. Uma grande associação americana chamada Business Roundtable que reúne os 200 líderes das maiores empresas – as Pepsis, as Coca-Colas, as Apples, as Googles – no fim de 2019 pôs um statement cá fora a dizer: «nós percebemos que o propósito das nossas organizações já não pode ser mais fazer dinheiro para os acionistas. Tem de ser fazer dinheiro para os acionistas e ainda tratar bem do ambiente e tratar das pessoas e tratar das nossas cadeias de valor».

Esta economia que o Papa propõe é uma economia de equilíbrio. esta dimensão é também uma das coisas que a Igreja pode oferecer ao mundo

Portanto, não fazer tanto dinheiro para os acionistas…
Não é possível fazer tanto dinheiro para os acionistas. Estamos numa economia que vai ser de equilíbrios. E acho que isso é que é a grande diferença em relação ao que tivemos no passado. Esta economia que o Papa propõe, que a ‘Economia de Francisco’ propõe, é uma economia de equilíbrio. A Igreja não é contra o lucro, nunca foi contra o lucro. A Igreja o que diz é que o lucro tem de ser balanceado com o cuidado da casa comum e com o cuidado das pessoas que trabalham para nós. Portanto, esta dimensão de equilíbrio acho que é também uma das coisas que a Igreja pode oferecer ao mundo porque a Igreja tem realmente exemplos de pessoas que, sendo católicas e sendo cristãs, adotaram esses exemplos de equilíbrio.
Há uns anos tivemos um projeto de investigação muito grande onde estudámos grandes empresas e tínhamos uma pergunta de investigação: «pode uma empresa grande ser cristã?» Quando dizíamos grande referíamo-nos a ter milhares de pessoas a trabalhar. E o que é que descobrimos? Descobrimos que estes líderes também têm medo, às vezes também não sabem o que é que hão de fazer. Não são heróis, mas são pessoas que estão muito ligadas ao seu propósito de ser cristãs em todas as dimensões da sua vida. Então levam para a sua empresa essa dimensão da cristandade. Não quer dizer que estas empresas sejam poucochinhas. Não, são empresas líderes. Posso dar um exemplo de uma empresa canadiana de conservas de tomate que tem milhares de trabalhadores e é líder nas conservas de tomate, mas é líder de uma maneira humana. Dentro dos recursos humanos tem um diretor de recursos humanos e um capelão. A função do capelão é ajudar cada pessoa que tem problemas. A função dos recursos humanos é fazer com que exista uma dimensão de recursos humanos igual para todos. Portanto, o capelão trata da individualidade e o dos recursos humanos trata de tudo o que é igual para todos. O interessante aqui é o equilíbrio entre os dois. Se fosse uma empresa só com o capelão não cuidavam da parte económica. Se fosse uma empresa só com o diretor de recursos humanos só cuidavam da parte económica. O equilíbrio é a dimensão mais importante.

No fundo, têm presente essa máxima do amor como critério de gestão.
É pensar como é que trazemos o maior princípio que temos como cristãos para dentro da empresa, mas sem perder a noção de que se trata de uma empresa. Não uma associação ou uma ONG. É uma empresa e tem como propósito ser economicamente viável e distribuir esses lucros pelas pessoas que participaram nele, fazer a sua atividade económica com o menor estrago ambiental possível e tratar das suas pessoas da melhor forma e da forma mais digna.

a justiça da distribuição dos lucros é uma coisa que aproxima as pessoas da empresa

Essa alteração na distribuição dos lucros é o diferencial nesta mudança? A mentalidade a esse nível está a mudar?
Está a mudar por várias razões. Primeiro porque hoje mulheres e homens estão muito comprometidos nas empresas. E ao estarem muito comprometidos é natural que os formatos empresariais e as próprias empresas também sejam diferentes. Hoje temos várias experiências pelo mundo inteiro de formatos de empresas que na realidade são cooperativas. O seu formato é um formato de cooperativa em que cada trabalhador tem uma parte da empresa. Temos dentro da economia de comunhão uma série de exemplos onde 30% dos lucros são distribuídos pelos trabalhadores, 30% são para a comunidade, 30% são reinvestidos na empresa e 10% são para os acionistas. E são empresas que funcionam muitíssimo bem porque a justiça da distribuição dos lucros é uma coisa que aproxima as pessoas da empresa, aproxima os clientes da empresa. Quem é que não quer fazer negócio com uma empresa destas?

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Qual será o papel determinante que as empresas terão de ter para que o sistema económico possa mudar?
Há dois estilos de empresas diferentes: umas que são financiadoras da economia – e essas têm o papel de escolher os projetos mais sustentáveis – e há depois aquelas que trabalham na economia real. Estas têm de evoluir os seus produtos, os seus serviços, a sua forma de fazer negócio, de maneira que consigam mostrar ao mundo que é possível uma economia diferente. Por exemplo: uma empresa que se dedique a fazer telemóveis pode encontrar uma forma sustentável de fazer telemóveis ou fazê-los sem essa preocupação. Eu trago um exemplo de uma empresa holandesa que se chama Fairphone que faz um telefone que é modelar, que implica menos lixo do que um telefone normal e que ao fim de três anos não precisa de ser deitado fora, que mostra que é possível fazer de outra maneira. Trago outro exemplo na minha apresentação de um motor de busca que se chama ‘Ecosia’ que, por cada três vezes que pesquisamos na Internet, «planta» árvores. Portanto, existe um movimento que está a emergir. Há já muitos exemplos daquilo que está a acontecer e vão existir mais porque as novas gerações não vão tolerar que uma empresa sirva só para viver para os acionistas. Não vão tolerar e vão penalizar. Portanto, as empresas, forçadas ou não, vão ter de se reinventar.

De certa forma é essa nova geração que está a ser o motor desta mudança?
Sim. Eu entrevistei o diretor da Coca-Cola há uns anos e ele dizia-me uma coisa muito interessante. Eles só contratam os melhores alunos de cada país e de cada universidade. Só contratam os melhores dos melhores e a ideia dele é que ao contratar esses vai ter o melhor talento disponível e o melhor talento vai trazer as melhores soluções. À pergunta que lhe fiz sobre de onde é que vinha a pressão para a sustentabilidade, respondeu-me: «Ricardo, o melhor talento que eu contrato vem com duas coisas: vem com opções – pode ir trabalhar para a Coca-Cola ou para outra empresa qualquer – e vem com uma bicicleta. Tem ambições ambientais. Se eu, como Coca-Cola, não for verdadeiro e transparente naquilo que estou a fazer ambientalmente, estes que têm ambições, mas que são os melhores talentos que existem, vão trabalhar para outra empresa». E dizia-me ele olhos nos olhos: «se eu só conseguir recrutar talento médio, daqui a 10 anos tenho uma empresa média. Não tenho a Coca-Cola». A grande preocupação que os gestores de hoje em dia têm é como é que estão a conseguir falar com estas novas gerações que não aceitam a falta de transparência, a manipulação ambiental.

uma das grandes inovações que o Papa propôs dentro deste movimento da ‘Economia de Francisco’ é que fossem os jovens a liderar e não os sábios

E precisamente a minha última pergunta era se o facto de a realidade parecer indicar que os jovens já não estão disponíveis para aceitar determinadas condições laborais significa que o sistema económico será mesmo alterado nas próximas décadas?
Na próxima década, se calhar. E voltando à ‘Economia de Francisco’, acho que o Papa viu isso muito bem. Porque uma das grandes inovações que o Papa propôs dentro deste movimento da ‘Economia de Francisco’ é que fossem os jovens a liderar e não os sábios. Que não fossem os ex-ministros das finanças ou os ex-banqueiros a liderar. Não. O Papa convidou os jovens a liderar a ‘Economia de Francisco’ e acho que nisso o Papa tem aquela sensibilidade do terreno que muitos destes líderes mundiais não têm porque estão guardados em grandes palácios e em grandes sítios. O Papa tem aquela sensibilidade de perceber a economia do terreno, do dia a dia, a economia real. Então, deu-nos o repto da realmente dar esta liderança aos jovens. Uma coisa muito bonita que nós e todos os países têm é ter jovens à frente destas organizações que são os hubs das ‘Economias de Francisco’. E são estes jovens que definem a agenda e avançam com propostas. Apoiados por nós, pelos professores, pela ACEGE e por outras forças económicas da sociedade, mas são eles que ditam o passo e a agenda. Acho que é isso é que vai mudar tudo porque isso é um acelerador, é um trampolim. Ao invés de o Papa contar com os mais sábios, é exatamente a lógica contrária. Conta com os jovens porque eles são aqueles que têm de estar mais interessados em fazer esta mudança, são aqueles de onde a inovação mais facilmente virá, são aqueles que mais comprometidos estão porque tem aquela energia, aquela vontade da juventude de fazer mais.

Sem vícios também?
Sem vícios. Podem pensar em coisas diferentes.

em Portugal temos um grupo muito coeso de jovens [da ‘Economia de Francisco’] que está a descobrir e a explorar várias opções com vários projetos

E a perceção que tem é que depois do pacto assinado e do movimento que lhe deu origem essa mudança está em marcha?
Está em marcha de maneiras diferentes em sítios diferentes. Cá em Portugal temos um grupo muito coeso de jovens que está a descobrir e a explorar neste momento várias opções com vários projetos. Obviamente, para nós faz sentido algo ligado às Jornadas Mundiais da Juventude porque vai ser um grande evento que vai congregar a Igreja portuguesa. Portanto, isso faz-nos sentido. No pós-jornadas ainda não sabemos o que é que vai acontecer, mas seguramente vai ser algo muito ligado a estes três desafios: ao futuro da dignidade do trabalho, à economia da solidão e esta ideia da pobreza, de como é que estamos a incluir os pobres naquilo que fazemos.

Ricardo Zózimo é doutorado em empreendedorismo pela Lancaster University de Londres e mestrado em planeamento estratégico pela University College de Dublin.

Conferência do núcleo algarvio da ACEGE alertou para mudança do sistema económico motivada pela crise ambiental (c/vídeo)