Na primeira conferência do terceiro dia das Jornadas de Atualização do Clero das três dioceses do Sul do país, que está a decorrer em Tavira no Hotel Vila Galé Albacora, João César das Neves pediu a grande parte dos membros da Igreja para mudar o seu discurso sobre a crise porque está errado.

O orador de hoje, economista professor da Universidade Católica Portuguesa, apresentou uma “Radiografia da Crise. Questões económicas e outras vertentes da crise”, economista e professor da Universidade Católica Portuguesa e defendeu que “não há capitalismo selvagem” e “não pode haver, nem nunca existiu”. O orador garantiu que, “sem regulamentos, tribunais, polícias e leis muito sólidas”, o capitalismo não funciona. “O capitalismo é de todos os sistemas o que precisa mais de leis. Não há nenhum mercado mais regulado do mundo do que o financeiro”, advertiu, apontando que o problema é ligeiramente diferente. “A regulação estava era errada”, confrontou.

Por outro lado, o conferencista criticou que “não vale a pena dizer que a culpa é do neo-liberalismo porque ele não existe”. “Hoje, o Estado é muito mais interveniente do que alguma vez foi”, contrapôs, acrescentando que “estamos a melhorar como nunca melhorámos e andamos todos a dizer mal disto”.

César da Neves defendeu também que a “crise financeira não manifesta uma crise de valores”, lembrando que a Igreja anda muitas vezes dizer erradamente o contrário. “A crise rebenta porque houve uma euforia. A explicação de que esta crise foi causada por ganância e estupidez é verdade, mas é por algo mais porque isso sempre houve”, disse, recusando “uma explicação demasiado simplista”. “O pecado” foi a razão apresentada. “Não há falta de valores, o que nos falta são critérios. Até há excesso de valores, mas eles estão desordenados”, concretizou.

O orador defendeu que a Igreja não tem razão para olhar para economia com desconfiança, quase como um “pecado do homem” porque “na economia vemos as maravilhas de Deus”. “Quando olhamos para a economia olhamos para a redenção” e “estamos a ver a caridade na verdade”. “A economia, mesmo quando funciona mal, é um grande hino à sabedoria de Deus”, considerou.

César das Neves lembrou que toda a economia está suspensa, não no dinheiro, mas no seu valor” e que, quando se perde a confiança neste “não há nenhum sistema no mundo que se aguente”. “O dinheiro só vale enquanto temos confiança e a crise mostrou o poder da desconfiança”, evidenciou.

Neste sentido, o orador deixou claro que “se a moeda funcionar mal, nada funciona” e “a crise mostra isso”. “O sistema só funciona com tradição, autoridade e mercado”, defendeu, evidenciando ainda que “estão a ser arrancados à pobreza mais pobres do que alguma vez foram”. “Isto está a acontecer em muitas partes do mundo. Há um extraordinário progresso. Se isto continua, a maioria da população do mundo será rica e os pobres serão uma minoria. Agora ainda é ao contrário”, disse, evidenciando que “os países pobres estão a crescer mais do que os ricos”.

César das Neves deixou ainda claro que o atual sistema financeiro “aguentou uma crise monstruosa que podia ter mandado tudo abaixo”, mas, surpreendentemente, “não foi quase nada a abaixo”. Neste sentido, considerou que “não houve uma depressão porque houve uma brutal intervenção maciça para aguentar o sistema e o sistema não gripou”. “Dada a dimensão da crise era difícil os bancos centrais fazerem melhor”, admitiu, acrescentando também que o papel do Estado foi “fundamental para aguentar a crise”.

O conferencista lembrou que “a crise é uma coisa normal” e “faz parte da natureza humana”, “sempre houve e vai haver”. “Todas as vezes que aparece um novo produto financeiro há sempre uma crise”, explicou, advertindo que “os produtos financeiros são muito poderosos e perigosos”.

César das Neves abordou a precariedade no emprego para dizer que este é “talvez o problema mais grave”, com “a maior taxa de sempre” e que deverá continuar a crescer este ano, mas advertiu que “a economia portuguesa está a criar empregos mas os portugueses não querem esses empregos”. “São os imigrantes a ocupar essas vagas”, disse, explicando que “os formados já não querem fazer os trabalhos de baixo”. “É um sinal de desenvolvimento, mas isto está a acontecer numa altura em que temos problemas”, acrescentou.

Outros dos problemas que identificou foi a fraca produtividade e os salários altos de determinados ativos . “Temos uma grande fatia da nossa população que não está em concorrência com o estrangeiro porque ganha salários muito altos”, observou.

Considerando que a causa da crise nacional está no “endividamento de Portugal”, disse que o país vai passar por um “período muito difícil quando começar a ajustar”. “Mas ainda nem sequer começámos”, advertiu, apontando ainda que “o problema é as corporações e os grupos organizados”. “A finalidade dos ministérios não é servir os utentes, mas as classes organizadas de profissionais dos respetivos setores . A finalidade do ministério da saúde não é servir os doentes, mas os médicos”, exemplificou, criticando que “a diferença entre o que o primeiro-ministro disse que ia fazer e o que realmente fez, é brutal”.

Na segunda parte da sua intervenção alertou para “outras crises”, “de recursos, alimentar, matérias-primas, petróleo”. “Provavelmente aumento de preços vai ser temporário e já estamos a retomar desta crise”, defendeu.

Abordou também a crise “de valores, de desânimo e perda de confiança”, criticando a falta de esforço na promoção da fertilidade, ao contrário de outros países da Europa, e apontando a baixa fertilidade como “a crise mais grave que vivemos”.

Referindo-se ao “otimismo progressista que vivemos”, que considerou ser o “maior problema que vivemos”, defendeu que “vivemos num mundo que está traumatizado com o sonho de que o homem era capaz sozinho de viver sem Deus”. Neste sentido, constatou que a “sociedade vive a crise de valores que tem a ver com a crise da esquerda”. “A esquerda quis redesenhar a sociedade perfeita sem Deus e vê-la esboroar-se nas mãos. Não há mais ninguém a defender os pobres papa além da Igreja. É uma crise religiosa do ateísmo que é a fé de que Deus não existe. Não podemos alegrarmo-nos com a crise do ateísmo porque a alternativa é o paganismo e a magia, não é o Cristianismo”, acrescentou.

O conferencista assegurou ainda que “a cura da crise tem duas fases: a da contenção e a da reconstrução” e alertou para a crise que a China “está a «preparar»”.

Samuel Mendonça

 

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico