A coordenadora do Grupo VITA, criado pela Conferência Episcopal Portuguesa para acompanhamento das situações de abuso sexual de crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal, aconselhou ontem os centros paroquiais e as misericórdias do Algarve a implementarem um “sistema de proteção e cuidado”, que deve ser revisto a cada dois ou três anos, com vista a certificar que aquelas são “organizações seguras”.

No Encontro dos Centros Sociais Paroquiais e Misericórdias da diocese, que decorreu no Centro Pastoral de Ferragudo, Rute Agulhas explicou que esse procedimento inclui oito passos: uma declaração de compromisso, uma equipa coordenadora, políticas e procedimentos de proteção e cuidado, um mapa de riscos, um código de conduta, regras de recrutamento, seleção, contratação e formação, um plano estratégico de comunicação e colaboração e a avaliação do sistema de proteção e cuidado.
“Se querem ser uma organização segura e protetora, primeiro há que assumir a declaração de compromisso e identificar quais vão ser os agentes focais”, explicou, referindo-se às pessoas de referência na instituição que terão formação específica naquela área.

A psicóloga clínica explicou que o mapa de riscos serve para “antecipar riscos possíveis” e pensar nas medidas de prevenção que devem ser adotadas e aconselhou que todos os funcionários tenham conhecimento do código de conduta. “Quem é recrutado – remunerado ou voluntário – tem de saber que existe um código de conduta e assinar um documento a certificá-lo”, aconselhou no encontro com cerca de 60 participantes.
Relativamente às regras de recrutamento, seleção e formação, considerou que “as pessoas não têm de se sentir ofendidas por se pedir o registo criminal” e aludiu à importância de “haver formação e acompanhamento” daqueles colaboradores.

A especialista, que já trabalha naquela área há 25 anos, aconselhou ainda aqueles agentes sociais a adquirirem comportamentos de precaução e proteção pessoal e abordou os procedimentos de sinalização que constam do manual de prevenção da violência sexual contra crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja católica em Portugal, publicado em dezembro do ano passado, disponível no site em https://grupovita.pt.
Aquela formadora referiu-se também ao ‘Kit Vita’, “um roteiro pela formação”, que será apresentado em junho, e “foi uma sugestão de um professor de Educação Moral e Religiosa Católica e a um jogo digital para crianças “pensado só para a Igreja”. “Devo dizer – porque acho que isto é motivo de orgulho para a Igreja – que Portugal é o primeiro país do mundo que está a avançar com programas de prevenção primária específicos para a Igreja. Não há um único país do mundo que tenha. Não há programas de prevenção. A Igreja está a dar um bom exemplo à sociedade porque estamos a fazer na Igreja o que devia ser feito, por exemplo, nas escolas todas”, afirmou.
A psicóloga explicou que o objetivo “é que as crianças cresçam sensibilizadas para esta problemática, que isto seja trabalhado de uma forma adequada à idade”. “Prevenir é pegar nos fatores de risco e tentar minimizar e tentar trabalhar competências com os miúdos que os ajudem a ficar mais informados e, acima de tudo, a saber o que fazer perante a situação. A responsabilidade de definir regras de segurança é nossa, mas temos de os informar. Eles têm de saber que existe, o que devem fazer e o que não devem”, sustentou, explicando que nestes programas “não há linguagem sexual explícita, nem se fala de ideologia de género”, mas trata-se de “trabalhar competências sociais emocionais”, ou seja, “trabalhar a resiliência, a assertividade, a comunicação clara, a resolução de problemas”.
A coordenadora explicou assim que o Grupo VITA tem “apostado muito em sensibilizar e formar as estruturas da Igreja”, porque “tem sido muito solicitado” para isso, mas explicou que o trabalho daquele organismo vai para além do âmbito eclesial, proporcionando também formação a instituições da sociedade civil que não têm nada a ver com a Igreja porque não há outras entidades que o façam. “Quando dizemos que a Igreja está a dar um exemplo positivo à sociedade ao imprimir este tipo de movimento é porque a própria sociedade pede ajuda a um grupo que foi criado pela Igreja”, realçou, contabilizando que em 2023 foram formadas cerca de 800 pessoas e este ano, até ao final de abril, cerca de 450.

Rute Agulhas explicou que o Grupo VITA está determinado em “reparar o passado, olhar para o presente e prevenir o futuro”. Nesse sentido, aludiu ao trabalho que tem vido a ser feito por aquele organismo que já teve 98 pedidos de ajuda para situações de violência sexual no contexto da Igreja e ainda outras de violência doméstica, de abuso na família e na escola. “A maior parte são situações que já aconteceram há muitos anos. Temos uma média de pessoas que foram abusadas há 40 anos, sendo que dois terços nunca falaram com a Comissão Independente”, testemunhou, acrescentando que, após os pedidos de ajuda, 38 pessoas não quiseram “passar para a fase seguinte” e só 60 avançaram para os atendimentos.
“A maior parte das pessoas que nos contacta é da zona norte do país e foram lá abusadas”, acrescentou, referindo que “o Algarve é uma das zonas do país com mesmo muito poucas sinalizações”.
A especialista explicou que, “muitas vezes, as pessoas são encaminhadas para apoio psicológico ou psiquiátrico”. “Temos uma bolsa, a nível nacional, de cerca de 70 psicólogos que foram selecionados pela Ordem dos Psicólogos e também alguns médicos psiquiatras. Vamos acompanhando estas pessoas e é a Igreja que paga este acompanhamento e que paga a medicação”, contou, especificando que, “na esmagadora maioria”, são “pessoas adultas” e que o crime de que foram vítimas “já prescreveu do ponto de vista penal”.

Pese embora essa realidade, Rute Agulhas disse que, “sempre que o suspeito está vivo (ou na dúvida)”, o crime é sempre sinalizado para a Procuradoria-Geral da República. “Não somos nós que temos a legitimidade para determinar a prescrição do crime, quem tem é o Ministério Público”, referiu, acrescentando haver casos em que se desconhece o nome do suspeito porque a vítima não se lembra ou não sabe.
Rute Agulhas explicou que as sinalizações são “sempre com o consentimento” da vítima, exceto se for menor de idade. “Não nos limitamos a atender, a sinalizar e a encaminhar, pois as pessoas, às vezes, mantêm-se em contacto connosco quase diariamente”, contou, acrescentando haver “uma ideia errada de que o celibato é a causa” dos abusos. “A maior parte dos abusadores existem na família e não há celibato. E há outra ideia errada também é a de que quem abusa é homossexual”, acrescentou, garantindo ainda que também há mulheres abusadoras.