Ao que tudo indica 2020 ficará marcado pelo ano em que aos olhos da maioria dos nossos políticos, a eutanásia foi aprovada, constituindo tal efeméride um grande progresso da sociedade. Será?
Estamos numa sociedade onde aqueles que trabalharam uma vida inteira, e agora se encontram doentes, o Estado quer-lhes dizer algo bem simples: podem morrer descansados! Já deram o que tinham a dar, estão numa fase não produtiva, por isso, se quiserem utilizar este direito tão bonitinho, pelo qual tantos se esforçaram por obter já desde a última legislatura, será uma alegria imensa que recorram a ele, pois já não servis para nada. Num país onde muitos são os casos de gente jovem com doenças terminais (infelizmente), o que o Estado lhes diz é que, como infelizmente já não vão produzir nada, não sofram mais, não incomodem mais, e peçam a eutanásia.
Neste nosso belo país, com uma sociedade que se diz moderna, vemos serem aprovadas leis que consideram crime o abandono e os maus-tratos aos animais (e muito bem!), mas não vemos um governo preocupado em proteger os mais frágeis, os grupos em desvantagem social, como os idosos, as crianças, as pessoas portadoras de alguma deficiência, etc. Assistimos a uma total inversão de valores e prioridades, onde os animais não podem ser abandonados (e bem, refiro novamente), mas os idosos podem ser arrancados das suas casas e depositados nos lares e nos hospitais, à espera de morrerem.
Há dias, Graça Franco escreveu: “não considero a vida referendável, nem sequer tenho o consolo dos que ainda vão lutar por um referendo. Tomara que consigam”. De facto, sendo a vida dom de Deus, não sendo por isso referendável, não seria este motivo mais do que suficiente para que todos nós, no mínimo, contribuíssemos para uma decisão sobre o assunto? E não adianta me virem dizer que pelo facto de a lei ser aprovada, a mesma não me obriga a dela usufruir, daí que não me deva opor, pois, o que está em jogo é algo trágico. Vivendo numa cultura do descarte, este é o caminho mais fácil para que se eliminem os que não produzem. Todavia, não quero com isto dizer que devemos viver a todo o custo, independentemente do nosso estado de saúde e sofrimento. Longe disso. O que defendo convictamente é que este debate aconteça verdadeiramente para poder ser amadurecido. Discutam mais, reflictam mais sobre o que pensam aprovar, mas, sobretudo, ofereçam a todos os que necessitam o acesso fácil aos cuidados paliativos, porque só quando toda a população tiver a possibilidade do seu usufruto é que este debate pode ser realizado com seriedade, honestidade e humanidade, como já referiram muitos entendidos na matéria.
O que aqui se joga é a vulnerabilidade do ser humano, fruto da doença, que acarreta por vezes grande sofrimento, e, sendo natural que ninguém gosta de sofrer, acredito que muitas pessoas desejem a morte, apenas e só, porque o grau do seu sofrimento é tal, que as leva ao desespero, e, qualquer coisa que termine com ele será boa mesmo que isso implique a sua morte. Mas será que esse desejo permaneceria, caso lhes fosse proposto o ingresso numa unidade de cuidados paliativos? No nosso país temos a belíssima Associação Portuguesa de Cuidados Palitivos (APCP) a defender que estes cuidados se definem como uma resposta activa aos problemas decorrentes da doença prolongada, incurável e progressiva, na tentativa de prevenir o sofrimento que ela gera e de proporcionar a máxima qualidade de vida possível a estes doentes e suas famílias. O que aqui conta já não é só, nem, sobretudo a doença, mas a pessoa. Perante situações em que não há nada a fazer relativamente à doença, o cuidado centra-se na pessoa, no controlo sintomático, no cuidado das dimensões psíquica e espiritual, e no cuidado da sua família. Trata-se de um cuidado holístico, que se revela o maior tesouro dos paliativos, com vista a proporcionar ao doente uma verdadeira qualidade de vida onde se acrescenta mais vida aos dias, do que dias à vida.
Em sofrimento o ser humano tende a escolher o caminho que mais rapidamente o liberte dessa situação. É a nossa natureza. Mas como afirmou Cicely Saunders, a “mãe” dos cuidados paliativos, “o sofrimento humano só é intolerável quando ninguém cuida”, e esta é a proposta dos paliativos: mitigar ou acabar com o sofrimento, tratando-o, e nunca matando a pessoa para acabar com a dor.
“Eutanásia” é um vocábulo grego, composto de “eu” (bom, verdadeiro) e “thánatos” (morte), que literalmente significa “boa morte”, uma morte sem sofrimento. Hoje, significa a ajuda a uma pessoa em estado terminal, ou gravemente doente, a pôr fim à própria vida, para aliviá-la da dor e do sofrimento. Mas não serão os cuidados paliativos a “verdadeira” eutanásia, isto é, a intervenção terapêutica que efectivamente permite a quem mais sofre ter, mais tarde, uma “boa morte” porque foi capaz de tratar a pessoa e mitigar o seu sofrimento? Acredito que sim.
Numa cultura onde a morte foi privatizada, para que cada vez menos contactemos com a nossa finitude, é de uma grande hipocrisia querer aprovar a lei da eutanásia, defendendo-a como o grande progresso, algo claramente desmentível quando olhamos, por exemplo, para a realidade belga.