
Radicada no Algarve desde 1999, Lígia Rodrigues é uma artista plástica conhecida, sobretudo, no panorama nacional religioso, ainda mais depois de sido convidada pelo Santuário de Fátima para fazer a peça oferecida o ano passado ao papa Francisco na sua peregrinação por ocasião do centenário das aparições. Folha do Domingo foi ao encontro do espaço de trabalho da artista nascida no Porto e licenciada em Belas Artes pela Faculdade da Universidade de Lisboa para uma entrevista. Texto por Samuel Mendonça
Como é que veio parar ao Algarve?
Tenho aqui um familiar que me convidou para vir para cá.
Para São Brás?
Para Loulé. Também vim porque o clima é muito melhor para a minha saúde.
E veio em que altura?
Cheguei ao Algarve em 1999.
E desde então permaneceu sempre cá?
Sim, embora tenha mudado de cidade.
Nasceu no Porto, mas viajou para França, Moçambique, África do Sul, Zimbabué…
Sim. No Porto, eu praticamente só nasci. Eu nem conheço o Porto.
Saiu logo de lá?
Saí com dois ou três meses. Só fui lá nascer. Porque os meus pais estavam em África e vieram para me ter. E depois fui para França, Moçambique e por aí a fora nessas viagens todas.
E essas viagens deveram-se a quê?
A circunstâncias da vida.
A Lígia era criança, então?
Claro. Para França fui acabada de nascer e depois estive lá dois anos e meio, três anos.
Mas os seus pais emigraram?
Os meus pais emigraram e depois dali fomos para Moçambique. Queríamos estabelecer-nos lá, mas depois houve a independência e, como não queríamos voltar a Portugal, fomos fugidos para a África do Sul porque eles iam matar todos.
Regressou a Portugal em 1976?
Sim. Nessa altura vivi um ano em Fátima, depois em Aveiro e depois vim para o Algarve. Depois fui para Lisboa, onde estive vários anos até acabar o curso.Depois de Lisboa fui em 1991 para Itália. Estive em Loppiano [primeiro centro internacional do Movimento dos Focolares em Florença], no Centro Ave. Fui trabalhar com a Ave Cerquetti que é escultora. Lá iniciei-me na escultura porque a minha formação é em pintura e praticamente aprendi lá tudo o que é escultura.
Quando é que conheceu o movimento?
Aos 16 anos.
E em Itália teve oportunidade complementar a sua formação?
Sim. Quando eu era criança gostava muito de pintar. As pessoas todas diziam que eu tinha muito jeito, que tinha de ir para as Belas Artes. Os meus pais também me incentivavam e levavam a exposições e eu comecei a pintar muito cedo.
Mas os seus pais são desta área?
Não…
“com 12 anos queria fazer uma exposição
e já tinha vários quadros pintados
…mas tinham gosto pela arte.
Sim. Eu com 12 anos queria fazer uma exposição e já tinha vários quadros pintados.
Incentivada pela família?
Também. Mas, sobretudo, eu adorava pintar.
Portanto, percebeu cedo que tinha inclinação para as artes.
Aos 5 anos. Desenhei uma bailarina que deixou toda a gente admirada. É um talento inato, mas desde sempre também fui muito incentivada. O meu sonho era viver pela arte e fazer uma exposição. Naquela altura era inédito uma criança com 12 ou 13 anos fazer uma exposição, mas eu tinha muitos quadros já. Só que, quando estava a preparar a exposição, foi quando se deu a revolução, a independência, e nós tivemos de fugir no próprio dia para África do Sul e os quadros ficaram todos. Aí tive a intuição que, se os quadros ficaram, depois de todo aquele esforço que eu tinha tido, era porque não valia a pena viver pela arte porque era uma coisa que passava. Portanto, quando fui para África do Sul já não estava muito interessada na arte. Já tinha havido um corte.
“Sempre tive muita sensibilidade
para as coisas de Deus
Houve então uma fase de desencanto motivada por essas circunstâncias?
Sim. Porque eu sempre sonhei coisas grandes, coisas que valem a pena e a arte ficou por ali.
Depois na África do Sul deparei-me com o apartheid e também com as diferentes Igrejas. Eu não era batizada, não tive formação cristã desde pequena. Foi uma escolha dos meus pais para que eu decidisse quando fosse grande. A formação cristã que eu tive foi na escola primária. Havia uma aula de moral e eu adorava aquelas aulas porque ouvia falar de Jesus e ficava encantada. Sempre tive muita sensibilidade para as coisas de Deus. E isso sim, isso interessava-me.
Na África do Sul deparei-me com muitas diferenças. De repente, fui invadida por uma série de gente a dizer que amava a Deus e que o seu é que era o verdadeiro. Eu pensava: “mas se existe um só Deus para quê esta confusão toda?”. Eu sofria muito com o apartheid porque em Moçambique não havia discriminação racial. Uma vez um amigo negro de outra rua veio brincar connosco e os meus amigos gozaram tanto com ele que ele começou a chorar e foi-se embora. Eu fiquei tão escandalizada que começou a nascer dentro de mim este desejo de um mundo onde sejamos todos iguais. Como eu tinha «perdido» a arte, então decidi que quando fosse grande queria percorrer o mundo para dizer que somos todos iguais e que Deus é amor. Entretanto vim para Portugal e conheci o Movimento dos Focolares que diz exatamente isso.
Mas na altura via-se, por exemplo, a seguir a vida consagrada?
Não. Eu não gostava muito de freiras e de opções que me limitassem a um grupo. Também por isso eu tinha decidido não casar,porque me parecia que uma família me fechava num grupinho e não me dava a abertura que eu queria ao mundo.
Com que idade decidiu isso?
Foi mais ou menos aos 9 anos.
Mas essa decisão manteve-se ao longo do tempo?
Manteve-se a vida toda e depois foi corroborada mais tarde em várias situações. Mas foi uma decisão desde muito cedo. Parecia-me um grande limite dedicar uma vida inteira a duas ou três pessoas.
Curiosamente essa é uma das reflexões que leva muitas pessoas a enveredarem pela vida consagrada, mas não no seu caso.
No meu também, porque quando conheci o Movimento dos Focolares…
… pôs essa hipótese?
Não pus a hipótese, eu fiz mesmo a escolha. Por isso é que fui para Loppiano…
…mas em Loppiano há várias formas de pertencer ao movimento.
Há várias formas, mas eu senti o chamamento àquela. Mas aí eu não via um grupo fechado porque, como o movimento vive pela unidade de todos e havia anglicanos e budistas e gente de todo o tipo e de todas as raças, eu identificava-me exatamente com aquilo. Então foi realmente para seguir a estrada do movimento que eu fui para Itália. Eu achava que nunca mais ia pensar na arte. Portanto, nunca mais pus a arte à frente de Deus.
E na altura deixou completamente de trabalhar nesta área?
Não. Eu acabei o curso, fui para Loppiano e, chegando lá, pensei que me iam chamar para a cozinha ou para outra coisa e chamaram-me para o estúdio da Ave [risos]. Portanto, continuei na arte pelas circunstâncias: porque ela precisava de ajuda e eu tinha formação. E estive aqueles anos todos sempre com ela. Foram cinco anos.
“(…) a minha relação com Deus
é a totalidade da minha vida
que depois, no trabalho,
se exprime em arte
E que influência teve Itália no seu trajeto?
Eu continuo a ter a mesma consciência de que a arte é uma coisa que passa. A mais-valia da minha vida é Deus. Para mim a arte é um trabalho, não é a totalidade da minha vida. Mas a minha relação com Deus é a totalidade da minha vida que depois, no trabalho, se exprime em arte.
Regressou depois a Portugal para exprimir então essa relação?
Sim, tive um acidente, adoeci e tive de sair do movimento e vim para Portugal.Aqui voltei a dar aulas. Já tinha dado quando estava a acabar o curso. Dei vários anos na secundária e, nos últimos anos, na universidade.
Mas deu aulas a alunos de que curso?
Dei expressão plástica aos professores primários e aos educadores de infância.
E o ensino não se lhe afigurou como uma possibilidade?
Não, eu nunca quis ensinar.
Mas foi convidada a continuar?
Sim. Propuseram-me seguir a carreira universitária porque quando me empenho nas coisas, levo-as a sério, mas eu não queria. Não era uma carreira académica o que me atraía porque eu também descobri que através da arte se consegue quase tocar o mistério e fazer com que as pessoas também o toquem.
Levar os outros a relacionar-se com o transcendente?
Exato. E sempre vi que a arte está ao serviço da liturgia.
“A arte é aquilo
que mais facilmente
exprime o indizível
Unicamente ou acha que a arte também tem esse papel noutras dimensões para além da liturgia?
Sim, claro. Em tudo o que tem a ver com espiritualidade. A arte é aquilo que mais facilmente exprime o indizível. Então é fácil comunicar, é fácil que as pessoas cheguem a Deus através da arte.
Mas eu também vejo que no meu trabalho há duas fases. Antes de fazer qualquer projeto, passo muito tempo – às vezes meses – a tentar perceber o que é que tenho que fazer. Faço meditação, rezo, investigo e leio a vida dos santos. Tenho que entrar dentro com a alma. E há um momento em que, de repente, eu vejo. Mas existe todo o problema da agonia até chegar lá. A parte da criação é bastante dura porque é sempre algo que nos transcende, quer a nível de ideia, quer a nível de execução. Por exemplo, quando tive a ideia para a zona do presbitério da igreja do Carvoeiro vi um Cristo que é a luz do mundo. Portanto não podia ser uma imagem iluminada por fora, tinha que ser Ele a expandir a luz. E eu pensei: “como é que eu faço isto?”[risos]. Não fazia a mínima ideia porque o Espírito Santo não vem com livro de instruções.
Isso é um processo de sofrimento.
Muito.
E que importância tem a oração nessa fase?
É fundamental. Eu tenho que viver sempre ligada a Deus. A Deus e ao próximo. Porque eu também sinto que se a arte não for expressão de todos, também não chega a lado nenhum, ou seja, não é uma arte que fale a todos, é uma arte de elite. Isto não significa que eu faça o que todos querem porque muitos só quereriam o século XVIII.
“Como a arte vai sempre à frente
e é algo de novo, as pessoas,
ao princípio, não aceitam
Isso é um dos problemas de hoje?
Sim, sempre foi. A mudança é sempre uma coisa muito fraturante. As pessoas não querem a mudança. Como a arte vai sempre à frente e é algo de novo, as pessoas, ao princípio, não aceitam. É sempre assim e eu acho que assim será.

Por isso muitas das expressões artísticas que a Igreja tem promovido são incompreendidas num primeiro momento?
Claro. Mas aí eu também vejo que tem que haver diálogo da parte do artista. Eu primeiro vou e ouço o que as pessoas querem. Sento-me e vejo as pessoas a funcionarem, apercebo-me do ambiente, da atmosfera, do tipo de pessoas. Depois retiro-me e tento ouvir a voz do Espírito que me diga o que fazer. Vou lendo e vou rezando. É um processo de grande contemplação e de sintonia que tem de ser contínua. Não me posso distrair.
“(…)eu não vivo para Deus
por um trabalho
Enquanto está a trabalhar no projeto ou sempre?
Sempre. Porque depois é uma questão de vida. Ou seja, eu não vivo para Deus por um trabalho. Quando eu tenho o projeto já delineado reúno a comissão da igreja e mostro. E, com eles, mudo. Depois de verem qual foi a minha proposta, perceberem o que eu digo e como nasceu, então aí sou eu que estou disposta a mudar. Isto é duro para um artista e os artistas não querem fazer isto. Por isso é que eu digo que estamos ao serviço e temos que conter os outros, mas sem cair em lugares comuns, em banalidades porque é preciso não ceder a compromissos quando se trata da parte espiritual. Aí eu não cedo, mas não é pela arte. É pela parte espiritual. Porque se não ajudamos a pessoa em entrar no mistério, então fica-se numa piedade popular que é um pouco maquilhagem, sem profundidade, conteúdo, verdade. É um equilíbrio muito delicado,mas é um trabalho muito bonito.
Trabalha sempre assim?
Sempre. Sempre porque é o meu método. Eu tenho que conter os outros. Não é fácil. Não se trata de ir atrás do que os outros querem como uma executora. É ouvi-los, contê-los e mudar, estando eu também de acordo, de forma a conter basicamente a ideia, a essência da coisa. É que existe aqui também um limite porque eu sei que aquilo que me é dito não vem de mim.Eu tento seguir o Espírito, portanto tenho que respeitar a ideia. Mas normalmente o que acontece é que quando eu explico, as pessoas aderem e depois aquilo que se muda nem sequer é estrutural.
São pormenores?
Sim. Normalmente a ideia fica sempre e o resultado final é o melhor porque é a expressão da unidade.
Mas a Lígia trabalha neste momento unicamente em arte sacra?
Sim, também não tenho tempo para mais [risos].
A dimensão do divino e do sagrado foi durante séculos a principal fonte de inspiração e a Igreja a principal promotora da arte. Hoje qual é o panorama e como foi mudando no último século?
É muito interessante porque a arte altera muito os paradigmas. Tenho vários colegas e amigos que são artistas contemporâneos – como eles se definem – que entendem que o importante é questionar, sobretudo pela negativa. Fazer uma proposta pela positiva é algo que não está considerado em arte contemporânea. Eles não me consideram artista contemporânea porque eu trabalho no sagrado. Ora isso por si só, como temática, já está fora da contemporaneidade.
“(…)não é lícito desprezar a arte sacra
como não contemporânea.
No entanto, eu não entro nas galerias
porque não me consideram arte contemporânea.
Mas isso não é um preconceito?
Claro. Uma vez estávamos numa reunião e eu perguntei-lhes: “como é que vocês consideram a arte contemporânea?”.“Tem que ser contestatária”, responderam. E eu insisti: “e vocês dariam a face direita a quem já bateu na esquerda? Acham que isso não é contestação? Conhecem alguma contestação maior do que o Cristianismo?”. Então, naquele grupo chegámos à conclusão que a arte contemporânea ou é livre de temática ou, se existem preconceitos à partida, está a contradizer-se a si própria.
Por outro lado, o que a arte contemporânea quer alcançar é o conceito e não tanto a forma. Mas há conceito mais forte que seja dado senão através do sagrado? Toda a filosofia, toda a teologia, toda a humanidade, está tudo ali. Portanto, quanto a mim não é lícito desprezar a arte sacra como não sendo contemporânea. No entanto, eu não entro nas galerias porque não me consideram arte contemporânea. O ser humano é interessante…
Esse preconceito é um dos principais obstáculos a que se produzam mais obras de arte no âmbito do religioso? Os artistas excluem-se à partida de fazer arte sacra por causa dele?
A maioria não só dos artistas, mas das pessoas do nosso tempo não tem uma vida de fé profunda. Acham que a fé está reduzida a fórmulas. E, por outro lado, a Igreja nem sempre tem a abertura suficiente para conter todos porque não existe, às vezes, um acompanhamento dos tempos em que se contenha o outro, em que se vá ao encontro, em que haja diálogo. Portanto, não existe abertura nem de um lado nem do outro. Penso que seria muito importante fazer-se um trabalho nesse sentido para começar a haver um diálogo da Igreja com o mundo.
Dar continuidade ao que o papa Bento XVI começou?
Exato. Os papas estão muito à frente. São eles os primeiros a abrir sulcos na história, exatamente por causa do Espírito. O Espírito faz novas todas as coisas. Por exemplo, na nossa Igreja continuamos a cantar as mesmas canções de há séculos. Porque é que a música contemporânea não entra na Igreja? Não é uma expressão nossa? Deus não tem de ser expresso através das expressões contemporâneas? Há aqui muita coisa que poderia mudar.
E esse preconceito que leva os artistas contemporâneos a não admitirem realizar obras nesta área é exclusivo de Portugal?
Não, lá fora é igual.
Portanto é um fenómeno global?
É.
“Não quero ter uma arte individualista
porque estaria a contradizer-me como cristã
E qual a solução?
Abrir as mentes. Saber que o outro tem tanto a dizer quanto nós ou mais. Não somos seres exclusivos, iluminados e únicos. Por que é que fechamos portas? Os outros também têm a sua verdade. Acho que falta percebermos que somos todos iguais e que todos temos ânsia de infinito. E, às vezes, o infinito está no outro. [É preciso] considerar o outro como uma mais-valia para uma comunhão global. Abriríamos horizontes se nos puséssemos no lugar do outro. Em vez de ter uma visão bidimensional passo a ter uma visão multidimensional da mesma questão. Portanto, saio com um enriquecimento gigante. E depois se eu fizer uma síntese, contenho todos os outros. E isto é uma arte universal que é muito mais rica do que uma arte individual, onde o protagonismo é de um determinado indivíduo.
Eu trabalho sozinha, mas antes de entrar aqui no estúdio tento conter todos porque sei que estou a trabalhar para todos. Se passo no café, posso amar aquelas pessoas e ao amá-las posso trazê-las para o estúdio. Tento criar relações de modo que essas pessoas estejam contidas no meu trabalho. Quando tenho tudo pronto chamo-os para virem ver, para darem opiniões. Eu não quero ter uma arte individualista porque estaria a contradizer-me como cristã.
Qual é, no seu entender, o principal aspeto que difere a arte sacra da que é feita noutro âmbito?
Eu não diria que há muita diferença porque a arte, por si só, já é uma expressão da alma humana. Mesmo que a pessoa seja um não crente, no fundo a sua procura de infinito está lá. As pessoas não param em si mesmas, nem no contingente. Não conseguem. Quando a pessoa tem esta sede e a expressa em arte, com certeza que existe ali uma centelha de divino. Eu acho que o ser humano é basicamente religioso, mesmo que não o saiba.
Atualmente é possível a um artista viver da arte em Portugal?
É muito complicado, sobretudo por causa da mentalidade. A arte é sempre a parte supérflua de todas as questões.
Apenas a arte ou toda a cultura?
Toda a cultura, sim, mas sobretudo as artes plásticas, porque aos concertos e àquilo que é imediato as pessoas aderem. As artes plásticas exigem um esforço maior.
“(…) por causa da mentalidade
eu não posso pedir por um trabalho
o que deveria e seria lícito
E como é que se consegue viver?
Trabalhando continuamente, tendo vários trabalhos ao mesmo tempo para uns pagarem os outros. Exatamente por causa da mentalidade eu não posso pedir por um trabalho aquilo que deveria e seria lícito, mesmo se agora as coisas vão melhorando. Ao início passei muito mal.
Na década de 70 ou 90?
Desde que estou no Algarve comecei a trabalhar em arte por minha conta. Exclusivamente em arte foi desde 2005 e não foi fácil. Também porque eu nunca cedi a compromissos. Havia grandes modas disto e daquilo, os meus colegas e iam todos atrás das modas para vender e eu não ia. Isso, se por um lado me fez partir pedra,…
… literalmente…
…literalmente [risos], …por outro lado também me salvou porque eu vejo que muitos dos meus colegas não trabalham em arte porque não conseguem e fazem outros trabalhos. Mas eu, como fui fiel e não cedi, foi muito importante. É muito importante a pessoa estar disposta a sofrer por aquilo em que acredita.
“Eu nunca gozo as peças
porque quando elas estão prontas
vão embora
Então valeu a pena esse sacrifício?
Valeu porque eu agora vejo o quanto as pessoas, tantas vezes, chegam a Deus por causa do meu trabalho. Eu nunca gozo as peças porque quando elas estão prontas vão embora. Passo a parte da dor de as gerar e depois vejo os frutos nos outros. Isso faz-me dar glória a Deus porque o objetivo era exatamente levar as pessoas a Ele.
E, presentemente, já consegue viver de uma forma mais digna?
Consigo pagar as contas. Não consigo fazer ainda grandes aventuras. Também não preciso. Mas ter alguma estabilidade não seria mau. Mas estou convencida de que com o tempo as coisas vão melhorando. Cada vez tenho trabalhos maiores. As coisas vão-se alargando.
As mentalidades também levam tempo a mudar. Mas acha que estamos a progredir neste caminho?
Talvez mais fora da Igreja. Dentro da Igreja ainda está a ser difícil.
A Igreja deixou de ser a grande promotora da arte como foi durante tantos séculos?
Eu não diria isso. Eu estive no encontro da CNAL [Conferência Nacional das Associações de Apostolado dos Leigos] agora em novembro e fiquei tão edificada porque percebi que a Igreja está no topo do mundo a conduzir a história. Nós não temos consciência do que se passa a nível da Igreja. Acho que devia haver muita divulgação e também para incentivar as pessoas a participar nestas coisas. O que a Igreja está a fazer no mundo é impressionante,só que não se fala.
Considera que a Igreja está à frente. Nesta vertente artística também acha que, à semelhança daquilo que aconteceu em séculos passados, estamos como Igreja a deixar uma marca identitária da nossa presença para os vindouros?
Muito tímida. Pergunto-me o que é que as gerações anteriores nos deixam fazer para que nós possamos ser expressão do nosso tempo, para podermos deixar uma marca. Porque o problema está aí, não é que as nossas gerações não queiram fazer…
Mas acha que os mais velhos estão a bloquear, de alguma forma, o processo?
Sim, estão. Quando faço um projeto, tenho de pensá-lo às novas gerações, não à minha, nem às do passado. E quem me paga o projeto tem de ter essa consciência.
Então o problema é um conflito geracional?
Não, o problema é a falta de cultura.
Isso nota-se mais em Portugal do que noutros países?
Eu não diria isso porque, por exemplo,Itália tem um grande problema em conceções artísticas contemporâneas na Igreja porque eles são tão ricos que não conseguem admitir coisas novas. E desde o sétimo ano de escolaridade estudam arte nas escolas… Portanto, eles consciência têm, só que estão de tal maneira ligados ao passado que também lhes custa dar este passo. Tem de haver aqui um crescimento a nível de mentalidade e, sobretudo, de cultura.
E vamos lá pela educação?
Eu acho que vamos mais pelos média porque as pessoas absorvem os média de uma maneira completamente doida. Se se quisesse investir na educação das pessoas era possível, mas desinvestir também está a ser possível. Basicamente é o que está a acontecer.
E esse desinvestimento tem saído caro.
Pois, é programado. Tem consequências: as pessoas estão cada vez mais vazias e cada vez gostam mais do imediato, do fácil.

As viagens que faz ao estrangeiro servem também para perceber de que forma é que deve orientar o seu percurso artístico, perceber outras linguagens?
Sim, sem dúvida. As viagens fazem, sobretudo, abrir a mente. Eu não tenho um percurso que seja eu que oriente. Não sou eu a programar,a minha programação é como é que eu vou amar mais a Deus. A arte, depois é Ele que me diz como é que a hei-de fazer. Mas viajar faz me conter povos, encontrar pessoas fabulosas.
Ao nível da espiritualidade também?
Também. A todos os níveis. O ser humano é fantástico. Se não víssemos tanto telejornal que só deita tudo abaixo e conseguíssemos descobrir o outro…
“A luz é o que eu sinto mais forte
como expressão artística
No seu sítio na internet há quatro palavras: luz, cor, intemporal, mil. Qual é o significado?
A luz é o que eu sinto mais forte como expressão artística. Por isso,a minha arte é quase toda branca. Quando entro numa igreja, gosto de entrar na luz. E é um contraste com o mundo. A cor tem mais a ver com os vitrais, os mosaicos ou com a parte de pintura que eu faço menos. Na cor procuro a vibração da vida.
Nas igrejas, para além da zona do presbitério, a sua intervenção é sempre em todo o espaço.
Eu vejo sempre o espaço como unitário. Fazer só uma intervenção, de modo a ficar com remendos cria mais divisão especial do que congrega. Normalmente apresento a proposta de fazer um projeto global a cumprir nos tempos.
Mas não lhe pedem muitas vezes para intervir apenas numa determinada área?
Sim, também.
E a relação com os arquitetos, como é?
Eu, normalmente, não trabalho com os arquitetos. Agora estou a trabalhar para o Santuário de Nossa Senhora da Piedade [Mãe Soberana] com o arquiteto e temos uma relação fantástica. Estamos a trabalhar na restruturação e está a ser uma experiência lindíssima.
Restruturação a que nível, pode adiantar?
Não, é surpresa.
Esse é um projeto que vai mudar o interior do Santuário da Mãe Soberana?
O interior e o exterior. O padre [Carlos] Aquino tem razão porque é o único santuário do Algarve que não tem capacidade para conter as pessoas, não tem sítio de logística, a parte sacra é muito pobre. Tem que se dar dignidade.
Também intervém pelo design adentro, pelo equipamento, não é?
Sim. O espaço é unitário e alma tem que ir atrás do que pede. Portanto, eu não posso fazer só escultura e o resto que se arranje. O artista é também um ser completo: aquilo que falta, faz. Quando me vem a ideia vem sempre em sintonia com tudo o resto.
A oferta ao papa Francisco

Como aconteceu o convite para fazer a imagem que foi oferecida ao papa Francisco na sua peregrinação a Fátima?
É uma história muito interessante porque eu tenho visto que nas coisas de Deus só quando se perde é que se ganha. A gente passa sempre pelo percurso da cruz para ter a ressurreição, em todos os trabalhos. Quando eu estava a fazer o Cristo para o Santuário de Fátima, o dr. Marco [Daniel Duarte, diretor do Museu do Santuário de Fátima] disse que gostaria de me convidar para participar num concurso para uma Nossa Senhora de Fátima, nova, contemporânea, para uma igreja em Leiria. E eu disse-lhe que não [risos] porque eu estava a acabar o trabalho deles e não tinha tempo para outra coisa. Entretanto terminei e telefonei a perguntar se ainda podia enviar, fiz a maquete, mandei e eles gostaram muito. Só que eu tinha previsto aquela imagem em mármore branco com dois metros de altura. A imagem ficava caríssima e então não ganhei o concurso. Mais tarde, ele perguntou-me da possibilidade de pensar aquela peça com 50 centímetros em alabastro para oferecer ao papa.

Na peça está patente a dimensão da luz – absolutamente fundamental na mensagem de Fátima –, mas também a dimensão da promessa.
Exato. A peça chama-se Promessa. Ao princípio, eu não queria dar-lhe este nome porque me fazia lembrar aquelas promessas que as pessoas cumprem de joelhos, fazia-me lembrar o negócio. Entretanto pensei que promessa é muito mais amplo do que as promessas que as pessoas vão cumprir a Fátima, mesmo se as contêm também. Havia vários tipos de promessa na revelação de Fátima e também é uma promessa de fidelidade à Igreja, em sermos fiéis à mensagem do papa. Tive a necessidade de conter o povo para ser uma resposta a este ‘sim’ de Maria e ao nosso ‘sim’ a ela, quase como que a dizer: “conta connosco para levar a Igreja para a frente com a radicalidade”. Portanto era também uma promessa neste sentido, uma promessa de vida.
Não esteve presente na entrega?
Não estive, nem fiz questão, nem quis porque era um presente do Santuário. Não senti que me tinha que pôr à frente, senti que tinha que desaparecer. Se eu estou ao serviço do Espírito, se é ele que me conduz como é que eu vou depois lá dizer que fui eu que fiz? Não fui. A ideia foi-me dada.
“(…) faço um esforço
até convencer Deus
a dar-me a ideia.
E convenço-O!
É uma espécie de intermediária?
Por um lado sim, mas por outro eu também vivo. Sou protagonista no sentido em que vivo a vida e que estou ao serviço, mas sei quem é o autor. Eu não me considero autora porque, no fundo, a arte é a ideia. O que eu faço é a parte técnica. Tenho que estar sintonizada a Deus para ter a ideia, mas a ideia é que é a parte criativa, a mais-valia da arte. A ideia é-me dada, mas também me é dada porque eu me proponho viver e faço um esforço até convencer Deus a dar-me a ideia. [risos] E convenço-O!