O coordenador do mais recente programa de combate à pobreza nas empresas, adaptado pela Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE), veio ao Algarve apresentar a iniciativa lançada em março deste ano. Folha do Domingo entrevistou Diogo Alarcão para tentar perceber melhor do que se trata. Entrevista conduzida por Samuel Mendonça.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Pelo que percebemos o ‘Semáforo’ pretende identificar situações de pobreza entre os colaboradores das empresas, mas, por outro lado, ajudar também as famílias a medir o nível de pobreza para possibilitar-lhes o planeamento de estratégias para aliviar ou resolver as suas principais necessidades. É isto?
É. Esta metodologia – que se chama ‘Semáforo da Pobreza’ e foi desenvolvida na América Latina pela Fundación Paraguaya, a sua detentora, e está a ser aplicada na América Latina e também já na Europa e nos Estados Unidos [da América] – visa, numa primeira fase, mapear os riscos económicos e sociais que são pré-indicadores de pobreza. Têm a ver com temas relacionados com o rendimento, por exemplo, mas também com o acesso à educação, à saúde, com o bem-estar, com as condições de habitação. Portanto, há uma série de macro dimensões no ‘Semáforo’ que são avaliadas através desta metodologia. Tem este caráter inovador que é o de olhar para os riscos de pobreza numa perspetiva mais holística, ou seja, numa perspetiva em que não se olha apenas para o rendimento disponível da família, mas para outras formas de pobreza que estão relacionadas com o ambiente socioeconómico em que as famílias vivem. Esta é a grande diferença e inovação em termos de metodologia do ‘Semáforo’.
Há uma outra que está relacionada com as pessoas que são convidadas a fazer esta autoavaliação. O ‘Semáforo’ está vocacionado para pessoas com vínculo laboral estável, pessoas que têm um emprego e uma remuneração ao final do mês, mas que, apesar disso, estão sujeitas a esses riscos económico-sociais. Portanto, não visa os desempregados, os pobres a que estamos habituados. Visa pessoas que, trabalhando, por diversas razões estão sujeitas a riscos de pobreza. E essas razões são quais? São múltiplas e por isso é que o ‘Semáforo’ pega nas várias macro dimensões. Dou-lhe alguns exemplos: um agregado familiar com cinco pessoas, dos quais apenas um trabalha, sendo dois adultos, duas crianças e um ascendente. Essa pessoa, que tem um determinado salário, tem de alimentar cinco bocas. Portanto, tem um problema de rendimento. Apesar de receber um salário tem um risco elevado de pobreza. Outro exemplo: um trabalhador com descendentes com problemas de saúde, física ou psicológica. A pessoa até trabalha, mas, em exposição às dificuldades inerentes ao acesso à saúde, também não deixa de estar exposta ao risco. Também pessoas com iliteracia, falta do acesso à educação. O que se procura são pessoas que têm vínculo laboral, mas com uma série de dificuldades que podem levar a que estejam em risco de pobreza, apesar de terem um vencimento ao final do mês.


Uma das grandes preocupações desta metodologia é que as empresas não tenham acesso à informação pessoal dos seus colaboradores

E, pelo que apurámos, isso é aferido através de um questionário feito aos colaboradores segundo essas dimensões macro.
Correto. O ‘Semáforo’ está pensado em três fases: a fase 1 que procura «tornar visível o invisível», a fase 2 que implica «tornar possível o impossível» e a fase 3 que visa «tornar de todos o que é de todos». Este tipo de pobreza normalmente é uma pobreza que não é declarada, não é visível porque as pessoas têm pudor, medo, dificuldade em expor as situações de fragilidade a que estão sujeitas. Então o que é que o ‘Semáforo’ faz? Através desse questionário online, permite que as pessoas façam a sua própria avaliação. Como estamos a falar de pessoas empregadas, precisamos que as empresas adiram ao programa. Ou seja, a ACEGE só consegue chegar a essas pessoas quando a empresa se disponibiliza para que os seus colaboradores façam o questionário. Portanto, há aqui um trabalho conjunto entre a ACEGE que promove a iniciativa, a empresa que está disposta a permitir que os seus colaboradores façam esta avaliação e o próprio colaborador, a própria pessoa que vai avaliar não só a sua situação, mas a situação do seu agregado familiar.
Este questionário é online também para garantirmos a confidencialidade dos dados. Uma das grandes preocupações desta metodologia é que as empresas não tenham acesso à informação pessoal dos seus colaboradores. Por isso, através da ativação de um link, o colaborador preenche o questionário e recebe os resultados da sua própria avaliação, resultados esses que aparecem identificados em três cores (por isso é que se denomina ‘Semáforo’): verde, amarelo ou vermelho. Verde significa que não há risco, que está tudo bem; amarelo significa que há algum risco que exige alguma ação, mas não a curto prazo; e vermelho significa que existe um risco a curto prazo que exige uma ação imediata. Portanto, quando o colaborador termina de preencher o questionário de 52 perguntas, a ferramenta cria um «mapa de vida» e, para cada uma das perguntas, aparece o verde, o amarelo ou vermelho para que, de imediato, seja convidado a priorizar as suas ações. Ele próprio toma a iniciativa de ir falar com alguém que o vai ajudar a resolver o problema.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

O próprio trabalhador fica com uma indicação do caminho que deve fazer?
Exatamente, o objetivo é que seja o próprio. Ao fazer a autoavaliação fica a saber quais são os seus riscos e é convidado, com base nessas respostas, a decidir entrar no programa para definir as prioridades.
Isto para as empresas é importante porque, embora não tenham acesso às respostas individuais dos seus colaboradores, a ferramenta vai gerar um outro relatório, agregando todas as respostas da empresa, criando um «mapa de riscos» da empresa. A empresa fica a saber quais são as áreas em que os seus colaboradores, como um todo, estão mais vulneráveis. E a partir daí pode, eventualmente, fazer ações de responsabilidade social corporativa e tentar encontrar soluções para os seus colaboradores. Isto é a fase 1.
Na fase 2, o que é que se pretende? Criar uma rede de respostas sociais. Já estão mais de 20 entidades identificadas – IPSS, câmaras municipais, Misericórdias, Cáritas, ONG – que estão no terreno e que desejamos que entrem na rede ‘Semáforo’ e que disponibilizem respostas a essas pessoas. Ou seja, o colaborador de uma empresa, depois de receber o seu «mapa de vida» e de ter confirmado que quer resolver este e aquele risco, pode telefonar para a rede ‘Semáforo’.
A ACEGE fez um protocolo com a Câmara Municipal de Lisboa e temos uma psicóloga que está no contact center para receber as chamadas. A pessoa liga para esse contact center que, com base na rede que está a ser criada, tenta encontrar a solução para o problema da pessoa, sempre com confidencialidade, garantindo que ela não é exposta e nem a empresa nem ninguém sabe que está a pedir ajuda.

Portanto, a própria empresa não saberá qual o trabalhador em concreto que está com aquela dificuldade?
A empresa só fica a saber o mapa do seu conjunto de trabalhadores. Há esta preocupação de salvaguardar a identidade e a situação de cada um, mas por outro lado também permite que a empresa no todo possa ter identificadas as áreas em que, eventualmente, quer atuar. Imagine que há um número significativo de pessoas com problemas na área da saúde oral. A empresa pode ver se consegue estabelecer um protocolo com uma clínica dentária que dê condições de acesso facilitado aos seus colaboradores. Aliás, há empresas que já fazem isto.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

E o que é que acontece se o trabalhador não der o passo seguinte, ou seja, se, apesar da dificuldade que está a viver, decidir não avançar?
É uma excelente pergunta em relação à qual temos estado a refletir no âmbito da equipa de projeto. O programa não é assistencialista. A ideia é que sejam as próprias pessoas protagonistas da sua história e da sua vontade de combater esses riscos. Portanto, tem de passar muito por uma comunicação junto das pessoas, incentivando-as para trabalhar no sentido de dar o primeiro passo. Nós não vamos obrigar.

Dar o primeiro passo a que nível?
Vou explicar. Estamos a implementar o programa neste preciso momento com o grupo C. Santos, importador da Mercedes, e está a ter imenso sucesso em termos de adesão dos colaboradores. O grupo investiu imenso na comunicação, fez uma série de comunicações incentivando os colaboradores não só a fazerem o questionário, mas a contactarem a rede do programa. A sensibilização e a motivação terão de passar muito pelas próprias empresas. Por isso é que este é um trabalho tripartido entre a ACEGE e os seus parceiros – e destaco aqui a fundação Manuel Violante, entre outros, e apoios como o da Fundação Gulbenkian –, as empresas, que permitem o acesso aos colaboradores e que também têm o papel da sua sensibilização, e os próprios trabalhadores.


É importante também para as empresas perceber que, ao fazer este levantamento e ao procurar encontrar soluções para os seus colaboradores, também estão a ter um ato de gestão


É relativamente consensual que é necessário aumentar os salários em Portugal, mas também temos de ter consciência que há empresas que estão preparadas para isso e outras não

E, ainda que estejamos numa fase inicial, como é que as empresas estão a acolher este projeto?
Estamos no início. O exemplo da C. Santos é importante porque tem impacto, pois estamos a falar de mais de 500 trabalhadores. Nós já testamos o programa na própria ACEGE e numa IPSS em Almada para perceber como é que as pessoas reagem e como é que o programa funciona. Tenho a alegria de lhe dizer que vamos implementar em mais duas empresas cujos nomes não estou ainda autorizado a revelar, uma ligada ao [setor] imobiliário e outra a serviços financeiros. Estamos a trabalhar com um conjunto de empresas que estão interessadas em conhecer o ‘Semáforo’. O que sinto é que esta metodologia é inovadora. As empresas estão preocupadas com estas questões e acredito que vamos ter recetividade e sucesso. Até porque para as empresas é também um desafio, pois estes riscos económicos e sociais traduzem-se muitas vezes em absentismo, em baixa produtividade, em acidentes de trabalho. Às vezes, as pessoas, porque estão preocupadas com um problema pessoal, descuram a segurança no trabalho. Portanto, é importante também para as empresas perceber que, ao fazer este levantamento e ao procurar encontrar soluções para os seus colaboradores, também estão a ter um ato de gestão. Isto não é caridade. Isto é também um ato de gestão. É uma forma de proporcionar aos colaboradores esta rede de respostas sociais, mas é também uma forma de ajudar a resolver alguns problemas que a empresa tem decorrente destes riscos.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

E as empresas estão a tomar essa consciência?
Estamos a trabalhar com as empresas, comunicando e tentando sensibilizá-las para isso.
As empresas que estão a lançar o programa, claramente que sim. Há essa preocupação. Há outras empresas com quem estamos a falar que estão ainda numa fase anterior de querer fazer um diagnóstico, querer perceber qual o nível de exposição que os seus colaboradores têm a estes riscos da pobreza. Portanto, temos as empresas em diferentes fases: umas mais à frente com vontade de trabalhar e outras, um bocadinho mais conservadoras, mas a quererem começar a fazer o trabalho.

E não teme que este contexto em que novamente nos encontramos de dificuldades crescentes para as empresas – nomeadamente a subida das taxas de juro, da inflação, do valor das matérias-primas, dos combustíveis, da energia –, possa ser desfavorável ao uso desta ferramenta?
Eu diria que é o contrário. Precisamente porque a conjuntura económica é tão desafiante e a inflação é a que é e os aumentos salariais são os que são, ou seja, porque o risco de aumento das situações de potencial pobreza é tão grande é o momento ideal para as empresas lançarem isto. Tenho conversado com muitos presidentes e diretores gerais de empresas explicando precisamente isso. Não há uma obrigação de a empresa dar resposta aos problemas que são identificados. Para isso é que estamos a criar a rede de respostas sociais. À empresa o que é que pedimos? O acesso aos seus colaboradores, a sensibilização para este tema e, se possível, encontrar também respostas que a própria empresa possa dar. Infelizmente, acho que é o momento oportuno para colocar isto na agenda porque os riscos económicos e sociais vão aumentar devido a essa conjuntura.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Temos em Portugal um alto risco da pobreza. Os dados divulgados pelo Eurostat apontam para cerca de 2,3 milhões de pessoas nessa situação, 23% da população, e diz que seria 43% se não fossem as prestações sociais. E mais concretamente em relação à classe laboral, a Pordata diz que Portugal é o 6.º país da União Europeia (UE) com mais trabalhadores em risco de pobreza, um pouco mais de 11% da população, e o Eurostat refere que no ano passado quase um quarto dos trabalhadores independentes da UE estava em risco de pobreza ou exclusão social. Portanto, Portugal é o 2º país da UE que regista a taxa mais elevada de pobreza entre os trabalhadores: 32,4%. São estes também os números que tem?
Infelizmente, são. Na apresentação que vou fazer apresento números que são muito parecidos com esses. Há aqui a questão, nomeadamente nos dados da Pordata, de serem números excluídos das prestações sociais, mas o risco está lá. Portanto, é real. São esses dados que também temos e foi perante esses dados que a ACEGE sentiu necessidade de avançar com este programa. Acreditamos que o tema é tão relevante que era impossível não fazer nada.
Depois há outra questão. A ACEGE é uma associação de inspiração cristã e, portanto, também é isso que o Papa Francisco nos pede quando põe os pobres como uma das suas prioridades. A ‘Laudato Si’ aborda a pobreza da terra e a pobreza dos homens. Portanto, como associação cristã, também temos essa vocação, de colocar isto na agenda do país e das empresas. Não haveria como não fazer isto agora.


Eu não diria que é uma economia que se serve dos pobres para poder crescer, mas claro que Portugal, e é conhecido, tem um nível salarial baixo

E pessoas que trabalham a tempo inteiro e que mesmo assim não conseguem sair da pobreza são o sinal de uma economia que se serve dos pobres para poder crescer?
Eu não diria que é uma economia que se serve dos pobres para poder crescer, mas claro que Portugal, e é conhecido, tem um nível salarial baixo. E, sobretudo, a diferença entre o salário mínimo nacional e o salário médio é muita. Portanto, é natural que as debilidades sejam maiores. Não acredito que os empresários não queiram fazer um esforço para remunerar melhor. É relativamente consensual que é necessário aumentar os salários em Portugal, mas também temos de ter consciência que há empresas que estão preparadas para isso e outras não.

E agora até já ficou definido os 760 euros de salário mínimo para 2023 e os 900 até 2026…
E é o caminho que, desejavelmente, todos temos de fazer, que Portugal como um todo e a sociedade, têm de desenvolver. Não acho que acho que haja aqui bons e maus.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Mas as empresas também já alertaram para o efeito da medida na saúde das organizações.
Temos consciência de que há limites para esta capacidade de aumentar salários, mas acredito, sobretudo nos empresários e gestores cristãos, que haja essa preocupação de promover o bem-estar do próximo. E a ‘Economia de Francisco’ vai também nesse sentido de alertar para que temos de repensar a forma como olhamos para o planeta e para o trabalhador. Julgo que há todo um caminho que tem de ser feito e que iniciativas como o ‘Semáforo’ procuram também sensibilizar e pôr na agenda. Acima de tudo, acho que é preciso pôr na agenda política e da sociedade o tema da pobreza e a forma como o combater. E se nós, como associação de empresários e gestores, conseguirmos dar o exemplo com as iniciativas que temos vindo a promover de que esse trabalho e esse desenvolvimento da pessoa e das condições de trabalho é possível ao nível do microcosmos da empresa, já estamos a contribuir de certa forma para esse combate.

E, precisamente, sobre o Papa Francisco perguntava-lhe: como é que avalia o seu papel na luta contra esta realidade?
Acho que é o papel do Papa e o papel da Igreja. Esta centralidade da pobreza, do combate à desigualdade e do respeito pela pessoa – que sempre esteve presente, como disso são exemplo os Evangelhos, – que o Papa assume nomeadamente com a ‘Laudato Si’, com a ‘Fratelli Tutti’ e agora com a ‘Economia de Francisco’, é algo a que ninguém pode estar indiferente e a que todos temos de responder. E o ‘Semáforo’ também é uma resposta a isso. Esta iniciativa da ACEGE também é uma tentativa de, ao nosso nível, procurarmos responder ao apelo do Papa Francisco.