A evocação que a organização da Feira de Santa Iria, em Faro, fez ontem daquela religiosa beneditina deixou claro ter sido a sua “boa fama, honestidade e retidão de vida” o que motivou a que aquele e tantos outros certames semelhantes espalhados pelo país a tenham escolhida como sua padroeira.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo
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Isso mesmo fez questão de sublinhar o padre António de Freitas na sua alocução sobre a vida daquela santa nascida no ano de 635 na então Nabância, a atual cidade de Tomar, ao afirmar ter sido “a sua vida de fé” que lhe deu aquelas virtudes tão apreciadas para eventos mercantis.

O reitor do Seminário São José de Faro explicou que Iria, “sendo de uma família abastada e alguém que é referido também por uma beleza singular, acaba por adotar e optar pela vida consagrada para assim oferecer o fim dos seus dias a Deus”. “Vai para um mosteiro beneditino que seria, provavelmente, misto”, contou.

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O orador explicou ter sido a sua beleza que lhe trouxe dissabores. “É martirizada precisamente por isso”, afirmou, apontando o ano de 663 como o do seu assassinato. “Sendo uma mulher honesta e que recusou o convite de Britaldo [filho do governando Castinaldo] e as persuasões que um monge chamado Remígio tentou, acaba por ficar mal-afamada. O espalhar desta má fama fez com que Britaldo se enchesse de fúria, pensando que era verdade que ela o tinha traído e, ou ele próprio ou tendo encomendado, Iria é assassinada junto ao Rio Nabão e jogada ao rio”, relatou, explicando que o corpo foi encontrado no Tejo, numas areias junto a Santarém.

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O dia de ontem, em que se assinalou a festa litúrgica de Santa Iria, por ocorrer o aniversário da sua morte, foi o escolhido pela empresa municipal Ambifaro, que organiza em Faro a feira que lhe é dedicada, para a homenagem. Antes das duas palestras que tiveram lugar em pleno recinto da feira, concretamente no pavilhão das entidades, foi celebrada a Eucaristia na igreja da Misericórdia com a imagem da padroeira, cedida precisamente pela Santa Casa, proprietária da peça. Na celebração, o cónego Rui Barros Guerreiro, presidente da Assembleia Geral da Santa Casa, também destacou que a homenageada “entregou o seu coração a Deus” e “a sua vida num contexto de defesa da fé”.

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No final da celebração, o pequeno cortejo previsto com a imagem até ao recinto da feira não se pôde realizar devido à chuva que caiu. No pavilhão que acolheu os presentes, o diretor do Museu Municipal de Faro fez o enquadramento histórico da feira e da peça e destacou a sua importância artística desta. Marco Lopes explicou que “no período medieval, ainda antes de Faro passar a cidade, já existia feira”, embora não seja possível ainda datar a sua fundação. No entanto, considerou que “não será de estranhar” que a vila de Faro, antes de 1540, já celebrasse a sua feira em honra de Santa Iria.

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O historiador acrescentou que o “grande impulso do ponto de vista económico” com a passagem de vila a cidade em 1540 e “do ponto de vista religioso” com a ascendência a sede episcopal em 1557 contribuiu “decisivamente” para que o certame, que começou por ser Feira Franca, “a partir desse momento ganhe outro estatuto”. “Em relação à Feira Franca sabe-se exatamente a data: 1596”, precisou, sublinhando que o “episódio negro da invasão inglesa” e o “período de declínio, decadência e desânimo” “do ponto de vista económico e comercial” que se lhe seguiu explica a atribuição do estatuto de feira franca por ser “preciso reanimar os ciclos económicos”, isentando os comerciantes de impostos ou tributos.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo
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Por outro lado, referiu que “a feira começou por ser na zona do Pé da Cruz, passou pelo campo da Trindade, no Jardim da Alameda, e mais tarde, em 1906, passa para o campo de São Francisco”, espaço que a acolhe ainda hoje.

Relativamente à imagem, restaurada em 2017 pela equipa restauro do museu de que é diretor, Marco Lopes afirmou estar “catalogada como das peças mais interessantes do período rococó [1750-1777] no Algarve, a par de mais uma meia dúzia”, “atribuída cronologicamente à segunda metade do século XVIII”, cuja autoria artística “não está documentada”. “É uma das peças mais elegantes, mais bonitas, mais vistosas”, afirmou o historiador, justificando que apesar de ser “brilhante do ponto de vista estético”, “do ponto de vista do tamanho não seria impactante ao ponto de ter um valor de mercado considerável e daí não existir uma nota de adjudicação a um artista conhecido”.

“É uma peça dinâmica. Há dinamismo gestual entre as mãos, ondulação das vestes que é muito característica deste período. Há também a graciosidade do gesto da Santa Iria, como que a convidar para seguir as pisadas não do seu martírio, mas daquilo que ela tanto advoga que é a questão da boa fama”, afirmou.

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O presidente da Ambifaro disse ter sido “a primeira vez, tanto quanto se sabe, que a imagem de Santa iria vem visitar a sua feira”. “A nossa intenção com esta iniciativa era uma só: devolver à feira um bocadinho de identidade. Trazer-lhe a história, as reminiscências da Santa Iria e que todos percebêssemos que na base destes 10 dias em que aqui estamos está um exemplo e uma história que é a história da patrona da nossa feira”, afirmou Henrique Gomes que agradeceu à Misericórdia de Faro a cedência da imagem da padroeira e aos restantes parceiros daquela iniciativa.

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O presidente da Câmara de Faro, Rogério Bacalhau, que garantiu que aquela feira é visitada “gente de todo o Algarve e também do Alentejo”, agradeceu aos parceiros daquela homenagem e lançou o repto aos palestrantes de que, em colaboração, escrevam um artigo sobre Santa Iria para os anais do município.

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Já o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Faro lembrou que a instituição é “das mais antigas da cidade de Faro” e “tem um património valioso”. “Mas o nosso principal património são os pobres a que nós damos assistência”, acrescentou José Candeias Neto.