A evocação que a organização da Feira de Santa Iria, em Faro, fez ontem daquela religiosa beneditina deixou claro ter sido a sua “boa fama, honestidade e retidão de vida” o que motivou a que aquele e tantos outros certames semelhantes espalhados pelo país a tenham escolhida como sua padroeira.



Isso mesmo fez questão de sublinhar o padre António de Freitas na sua alocução sobre a vida daquela santa nascida no ano de 635 na então Nabância, a atual cidade de Tomar, ao afirmar ter sido “a sua vida de fé” que lhe deu aquelas virtudes tão apreciadas para eventos mercantis.
O reitor do Seminário São José de Faro explicou que Iria, “sendo de uma família abastada e alguém que é referido também por uma beleza singular, acaba por adotar e optar pela vida consagrada para assim oferecer o fim dos seus dias a Deus”. “Vai para um mosteiro beneditino que seria, provavelmente, misto”, contou.


O orador explicou ter sido a sua beleza que lhe trouxe dissabores. “É martirizada precisamente por isso”, afirmou, apontando o ano de 663 como o do seu assassinato. “Sendo uma mulher honesta e que recusou o convite de Britaldo [filho do governando Castinaldo] e as persuasões que um monge chamado Remígio tentou, acaba por ficar mal-afamada. O espalhar desta má fama fez com que Britaldo se enchesse de fúria, pensando que era verdade que ela o tinha traído e, ou ele próprio ou tendo encomendado, Iria é assassinada junto ao Rio Nabão e jogada ao rio”, relatou, explicando que o corpo foi encontrado no Tejo, numas areias junto a Santarém.




O dia de ontem, em que se assinalou a festa litúrgica de Santa Iria, por ocorrer o aniversário da sua morte, foi o escolhido pela empresa municipal Ambifaro, que organiza em Faro a feira que lhe é dedicada, para a homenagem. Antes das duas palestras que tiveram lugar em pleno recinto da feira, concretamente no pavilhão das entidades, foi celebrada a Eucaristia na igreja da Misericórdia com a imagem da padroeira, cedida precisamente pela Santa Casa, proprietária da peça. Na celebração, o cónego Rui Barros Guerreiro, presidente da Assembleia Geral da Santa Casa, também destacou que a homenageada “entregou o seu coração a Deus” e “a sua vida num contexto de defesa da fé”.

No final da celebração, o pequeno cortejo previsto com a imagem até ao recinto da feira não se pôde realizar devido à chuva que caiu. No pavilhão que acolheu os presentes, o diretor do Museu Municipal de Faro fez o enquadramento histórico da feira e da peça e destacou a sua importância artística desta. Marco Lopes explicou que “no período medieval, ainda antes de Faro passar a cidade, já existia feira”, embora não seja possível ainda datar a sua fundação. No entanto, considerou que “não será de estranhar” que a vila de Faro, antes de 1540, já celebrasse a sua feira em honra de Santa Iria.

O historiador acrescentou que o “grande impulso do ponto de vista económico” com a passagem de vila a cidade em 1540 e “do ponto de vista religioso” com a ascendência a sede episcopal em 1557 contribuiu “decisivamente” para que o certame, que começou por ser Feira Franca, “a partir desse momento ganhe outro estatuto”. “Em relação à Feira Franca sabe-se exatamente a data: 1596”, precisou, sublinhando que o “episódio negro da invasão inglesa” e o “período de declínio, decadência e desânimo” “do ponto de vista económico e comercial” que se lhe seguiu explica a atribuição do estatuto de feira franca por ser “preciso reanimar os ciclos económicos”, isentando os comerciantes de impostos ou tributos.


Por outro lado, referiu que “a feira começou por ser na zona do Pé da Cruz, passou pelo campo da Trindade, no Jardim da Alameda, e mais tarde, em 1906, passa para o campo de São Francisco”, espaço que a acolhe ainda hoje.
Relativamente à imagem, restaurada em 2017 pela equipa restauro do museu de que é diretor, Marco Lopes afirmou estar “catalogada como das peças mais interessantes do período rococó [1750-1777] no Algarve, a par de mais uma meia dúzia”, “atribuída cronologicamente à segunda metade do século XVIII”, cuja autoria artística “não está documentada”. “É uma das peças mais elegantes, mais bonitas, mais vistosas”, afirmou o historiador, justificando que apesar de ser “brilhante do ponto de vista estético”, “do ponto de vista do tamanho não seria impactante ao ponto de ter um valor de mercado considerável e daí não existir uma nota de adjudicação a um artista conhecido”.
“É uma peça dinâmica. Há dinamismo gestual entre as mãos, ondulação das vestes que é muito característica deste período. Há também a graciosidade do gesto da Santa Iria, como que a convidar para seguir as pisadas não do seu martírio, mas daquilo que ela tanto advoga que é a questão da boa fama”, afirmou.

O presidente da Ambifaro disse ter sido “a primeira vez, tanto quanto se sabe, que a imagem de Santa iria vem visitar a sua feira”. “A nossa intenção com esta iniciativa era uma só: devolver à feira um bocadinho de identidade. Trazer-lhe a história, as reminiscências da Santa Iria e que todos percebêssemos que na base destes 10 dias em que aqui estamos está um exemplo e uma história que é a história da patrona da nossa feira”, afirmou Henrique Gomes que agradeceu à Misericórdia de Faro a cedência da imagem da padroeira e aos restantes parceiros daquela iniciativa.

O presidente da Câmara de Faro, Rogério Bacalhau, que garantiu que aquela feira é visitada “gente de todo o Algarve e também do Alentejo”, agradeceu aos parceiros daquela homenagem e lançou o repto aos palestrantes de que, em colaboração, escrevam um artigo sobre Santa Iria para os anais do município.

Já o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Faro lembrou que a instituição é “das mais antigas da cidade de Faro” e “tem um património valioso”. “Mas o nosso principal património são os pobres a que nós damos assistência”, acrescentou José Candeias Neto.