Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

A Câmara de Silves voltou a associar-se às Jornadas Europeias do Património que se celebraram nos passados dias 28, 29 e 30 de setembro, este ano sob o tema “Partilhar Memórias”.

A autarquia promoveu um programa que incluiu no dia 30 uma palestra sobre a Sé e o seu Cabido Catedralício proferida por Gonçalo Melo da Silva, investigador do IEM, Universidade Nova de Lisboa, sob o tema “Uma Memória desconhecida. A Sé e o Cabido de Silves nos primeiros tempos”.

“Silves, em 1253, é sede de uma diocese restaurada, é dirigida por prelados próprios, é munida de um cabido organizado, ambos próximos da coroa e alguns com formações intelectuais que hoje em dia diríamos quase invejáveis”, deixou claro o historiador, licenciado em História e mestre em História Medieval.

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O orador assegurou que “Silves vai, assim, assumir uma centralidade, no plano eclesiástico da diocese e do Algarve, inegável”, mas acrescentou que “para assumir essa centralidade, não será fácil”porque conta com “uma oposição um bocadinho velada”. “Vai ter que negociar com a Ordem de Santiago que é a ordem militar no Algarve com mais força. É a instituição religiosa, depois do bispo de Silves, mais importante. Ela domina a maior parte das igrejas paroquiais, domina as igrejas paroquiais com os rendimentos mais elevados e o bispo vai ter que negociar, e até mesmo, às vezes, lutar, para impor a sua autoridade e afirmar a sua superioridade episcopal junto da ordem militar”, sustentou.

“Como o fez, qual o grau de êxito da sua política, se conseguiu ou não vergar a Ordem de Santiago aos seus intentos, são questões que irei apresentar na minha tese de doutoramento”, prosseguiu Gonçalo da Silva, referindo-se ao seu trabalho académico que incidirá sobre os portos marítimos algarvios na Idade Média.

O investigador, adiantou no entanto, que desde a primeira conquista da cidade, em 1189, “há uma preocupação, desde logo, de dotar a cidade e o bispo D. Nicolau de um Cabido, um conjunto de clérigos que vai ajudar o bispo a estruturar, a organizar e a gerir a diocese, a celebrar o ofício litúrgico”.

Gonçalo da Silva lembrou que “logo em 1252, Afonso X de Castela, enquanto detinha o controlo sobre o Algarve, dá início ao processo de restaurar a Sé de Silves, nomeando um bispo”. “Sabemos que antiga mesquita aljama é convertida numa fase inicial ao culto cristão. Sabemos que esse edifício primitivo vai manter essas funções até bastante tarde. Em 1326 há um documento que refere uma Sé velha em Silves onde o conselho ainda se reunia. Esse documento até nos permite saber que a Sé tinha um claustro e dentro desse claustro um antigo altar a São Brás”, acrescentou, concluindo que “se existe uma Sé velha é porque estava a ser construída uma Sé nova”.

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“Em 1300 são referidas umas casas que estão a ser destinadas às obras da Sé”, prosseguiu, observando que “as obras vão prolongar-se muito” devido a um conjunto de acontecimentos, incluindo catástrofes naturais, e que só “em 1473 a igreja estava finalmente concluída”.

O historiador disse que o bispo “governava a diocese auxiliado pelo Cabido, um conjunto de clérigos que inicialmente vivia com ele para auxiliá-lo no culto religioso na catedral” e “também na organização da diocese”, “mas que pouco depois vai separar-se, como acontece noutras dioceses do país, e constitui uma instituição à parte”. “Durante os primeiros tempos sabemos que a catedral foi ocupada por seis bispos”, afirmou, lembrando que o primeiro é D. Roberto (1253-1261) da Ordem dos Pregadores (dominicanos), o segundo D. Garcia (1261-1268), da mesma ordem, seguindo-se D. Bartolomeu (1268-1292), da Ordem de Cister, D. Domingos (1292-1297), D. João Soares Alão (1297-1301) e D. Afonso Eanes (1312-1320).

“Os últimos são designados na documentação como clérigos do rei, ou seja, são clérigos que têm uma articulação muito forte com o poder real e que estão muito próximos do círculo régio”, acrescentou, afirmando que “todos eles apresentam elementos que constituem um perfil de bispo que se quer para Silves”. Gonçalo da Silva sustentou que, a partir do domínio do Algarve por D. Afonso III, a opção de “bispos fiéis ao monarca” procura “limpar a Sé de elementos castelhanos”. “Todos eles estão muito ligados aos círculos cortesãos, ao círculo do rei, alguns eram mesmo colaboradores muito próximos dos monarcas. Uns terão desempenhado ofícios régios ligados à escrita como escrivães, outros à justiça como inquiridores, ouvidores ou juízes”, observou, explicando que, por exemplo, “D. Garcia é nomeado embaixador de Afonso X junto do papa em Roma, onde acaba por morrer” e que, no caso de D. Bartolomeu, ele chega mesmo a ser médico e capelão régio de D. Afonso III”, sendo também um “aliado fortíssimo de Afonso III para diminuir o peso e o poder da Ordem de Santiago” no Algarve.

Segundo o historiador essa seria mesmo uma das “vantagens” para os prelados com a proximidade à coroa. “Por um lado, os reis vão aumentar o seu poder sobre os prelados e, principalmente, o seu poder sobre o território recentemente conquistado. Por outro lado, para os bispos esta proximidade ao poder régio vai aumentar em muito a sua influência, capacidade de intervenção e para conseguirem um aliado muito forte numa disputa que vão manter durante muito tempo ainda com outros poderes religiosos presentes na diocese com muita força que são as ordens militares e dentro destas a Ordem de Santiago”, afirmou, explicando a importância da preparação dos bispos em áreas como a justiça, a administração ou a diplomacia para afirmar a “muito pequena” diocese face à vizinha de Évora.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

O investigador disse ainda que os “primeiros estatutos da Sé e do Cabido” são redigidos e aprovados em 1263, inspirados no regulamento da Sé Metropolitana de Silves, a Sé de Sevilha, da qual vai depender ao nível da jurisdição eclesiástica até ao final do século XIV. “Só no final do século XIV, quando D. João I de Portugal está em guerra com Castela e está ao mesmo tempo a ocorrer um sisma no Ocidente entre o bispo de Avinhão e o bispo de Roma, que D. João I coloca-se ao serviço do papa de Roma e pede-lhe que Silves deixe de estar na dependência de Sevilha e transite para a dependência de Lisboa”, lembrou Gonçalo da Silva que defendeu a realização de um “estudo de uma equipa pluridisciplinar com historiadores da arte, arqueólogos”, entre outros especialistas naquela catedral.

O orador explicou que o Cabido, constituído por 13 cónegos, seis raçoeiros e quatro quaternários, era composto por um deão, ajudado por um mordomo, por um arcediago, por um chantre, um tesoureiro e um mestre-escola e que se deveria reunir no espaço do coro que terá existido por cima da entrada principal da catedral. “Os cónegos recebiam uma ração ou mais. Os raçoeiros eram chamados assim porque tinha um prestígio menor e normalmente recebiam uma ração e os quaternários recebiam um quarto de uma ração”, contou, acrescentando que “o perfil de cónegos e raçoeiros é muito semelhante ao dos prelados”.