A família Kalynchuk chegou há mais de dois meses a Portimão, fugida da guerra na Ucrânia, para ser acolhida num apartamento do Centro Social Paroquial de Nossa Senhora do Amparo. O pai Roman, de 33 anos, a mãe Liuba, de 32, e os filhos Andrii, de 11, Vladyslav, de 8, e Kateryna, de 5, percorreram mais de 3.700 quilómetros durante três dias no seu próprio carro até chegar ao Algarve.
No país invadido há três meses pelo exército da Federação Russa viviam numa cidade a sudoeste, equidistante em cerca de 200 quilómetros das fronteiras com a Polónia, a Hungria, a Eslováquia e a Roménia.
Na difícil hora de partir e deixar tudo para trás, a escolha do destino tornou-se mais fácil pela ligação a um primo imigrante há vários anos em Portimão que já tinha sido também apoiado pela paróquia de Nossa Senhora do Amparo. O assentimento de braços abertos daquela comunidade fez com que a família Kalynchuk se aventurasse esperançosa rumo ao desconhecido. Por se tratar de um agregado familiar considerado numeroso no seu país, o pai pôde fazer parte do grupo de homens que usufrui do excecional benefício de não ter obrigatoriamente de ficar para defender a pátria em tempo de guerra.
Em entrevista concedida ao Folha do Domingo, Liuba Kalynchuk contou como viveu os primeiros dias de guerra, como está a ser acolhida pela paróquia portimonense e como vive à distância os acontecimentos no seu país. Entrevista conduzida por Samuel Mendonça com a colaboração do diácono Carlos Miranda.

Quando é que chegaram a Portimão?
Chegámos no dia 15 de março. Saímos da Ucrânia no dia 12 de março e passámos três dias na estrada.

Vieram no vosso carro?
Sim.

Saíram da Ucrânia pela Hungria?
Nós vivemos no sudoeste da Ucrânia, em Ivano-Frankivsk, a cerca de 200 quilómetros da fronteira com a Polónia. Mas saímos pela fronteira com a Hungria porque na Polónia havia muita gente e carros e a espera era de 5/6 dias. Pela Hungria era mais fácil.

No dia em que a guerra começou, 24 de fevereiro, abrimos a janela às 7h e vimos uma bomba que caiu sobre o aeródromo militar da nossa cidade que ficou em chamas

São naturais de onde?
Eu sou natural de Karkiv, no leste da Ucrânia, perto da fronteira com a Rússia, que hoje é uma das cidades mais bombardeadas, o que não acontece na parte oeste do nosso país onde vivemos. Mas no dia em que a guerra começou, 24 de fevereiro, abrimos a janela às 7h e vimos uma bomba que caiu sobre o aeródromo militar da nossa cidade que ficou em chamas. Em 20 minutos vestimos os miúdos, apanhámos alguns documentos e trouxemos apenas uma mala porque vivemos num apartamento no 7º andar. Foi muito terrível, muito perigoso. E os miúdos a assistirem àquilo tudo.
Fomos no nosso carro até à casa dos meus pais que moram a pouco quilómetros da nossa cidade. Quando chegámos fomos para a cave porque estávamos todos em perigo. E desde 24 de fevereiro nunca mais voltámos ao nosso apartamento porque era muito perigoso.

Aeródromo de Ivano-Frankivsk no dia do ataque

O seu marido também é natural de Karkiv?
Não. Nasceu em Ivano-Frankivsk.

E a sua família ficou lá?
Os pais do meu marido já tinham falecido antes da guerra. Os meus pais vivem em Ivano-Frankivsk. O meu pai teve de ficar na Ucrânia porque, por causa da guerra, os homens até aos 60 anos não podem sair do país. E a minha mãe ficou com o meu pai para ele não ficar sozinho.

E qual é a situação deles neste momento?
Lá estão…

Continuam em perigo?
Sim. Disse-lhes que ficaria com eles, mas o meu pai aconselhou-me a partir por causa dos meus filhos. Ele deseja ir para a frente da guerra porque todos estão preocupados, mas está com a minha mãe. Ele entende que os homens novos devem ir para a frente da guerra e acha que também deveria ir. Queremos e esperamos que a guerra acabe e que possamos voltar a viver como antes.

Tem família em Portugal?
Tenho cá um primo.

No Algarve?
Sim, em Portimão.

É importante para mim que o meus filhos tenham uma vida tranquila

E foi por isso que decidiram vir para Portimão?
Sim, porque não tínhamos ligação a nenhum outro país, onde seria ainda mais difícil por causa da língua e do trabalho. Com três filhos não é fácil. É importante para mim que o meus filhos tenham uma vida tranquila.

Tem irmãos?
Não.

E o seu marido?
Também não.

Que profissões exerciam na Ucrânia?
Na Ucrânia tínhamos um bom trabalho muito bom. Exercíamos a nossa profissão de acordo com aquilo que estudámos. Eu e o meu marido somos advogados e tivemos de parar o nosso caminho.

Como é que a paróquia vos acolheu?
O meu primo conhecia o padre Nuno [Tovar de Lemos] e pediu-lhe ajuda. O padre Nuno disse-lhe que podíamos vir porque teríamos alojamento e ajuda para conseguir documentação na Segurança Social, no SEF – Serviços de Estrangeiros e Fronteiras… Agora conheço esses termos [risos].

As pessoas que temos conhecido têm sido muito, muito simpáticas. Sentimo-nos como se estivéssemos no nosso país

Mas como têm sido acolhidos nestes primeiros meses?
As pessoas que temos conhecido têm sido muito, muito simpáticas. Sentimo-nos como se estivéssemos no nosso país. Ajudam-nos. Muitas dão-nos roupa, brinquedos para as crianças porque não pudemos trazer nada para além do estritamente necessário. Têm sido uma grande ajuda para nós.

É a primeira vez que estão no sul da Europa?
Sim. O meu primo vive em Portugal há 20 anos, mas nesta casa apenas há 4 ou 5 anos. Todos os anos dizia aos meus pais para virmos de férias, mas era muito longe e a viagem de carro com três filhos era dura. Nunca pensei que o faria por causa de uma guerra.

Soube que os seus filhos praticavam Taekwondo na Ucrânia.
Sim. O meu filho mais velho é campeão na Ucrânia. Já ficou em primeiro e em segundo lugar em competições. Começou a praticar quando tinha 4 anos. E o nosso filho mais novo também. Por causa disso, o Andrii já viajou por muitos países: Alemanha, Itália, Holanda, Estados Unidos da América, entre outros.

É campeão da modalidade na Ucrânia?
Sim, na Ucrânia é campeão nacional. Começar a praticar Taekwondo foi muito importante para a sua socialização.
O padre Nuno ajudou-nos e ele agora já está a praticar num clube aqui da cidade.

Da esqª para a dirª: Kateryna, Liuba, Vladyslav, Roman e Andrii • Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

E que outros apoios têm tido?
O meu marido já trabalha. É jardineiro num campo de golfe.
Eu continuo à procura de trabalho, mas é difícil por causa das crianças. Na Ucrânia tinham aulas online. Com a minha filha apenas com 5 anos é mais difícil deixá-la. No próximo ano já irá para o jardim de infância, o que este ano já não foi possível.

E os rapazes gostam da escola cá?
É complicado porque não conhecem ninguém, não falam português. Para nós é uma língua difícil, tal como o ucraniano é difícil para vós.

Os seus filhos estão a ter aulas de português?
Não. O Governo português concedeu apenas a mim e ao meu marido aulas online de três horas, duas vezes por semana. Perguntei sobre as aulas para as crianças, mas ainda não é possível.

Vladimir Putin refere-se sempre ao que está a perpetrar na Ucrânia como uma “operação militar especial” para a “desmilitarização” do país, fala numa força de “manutenção da paz”. Este discurso faz sentido? A Ucrânia é uma ameaça para a Rússia?
Não sou especialista em assuntos militares e políticos, mas é muito perigoso quando um dia de manhã assistes a bombardeamentos com crianças e outras pessoas a morrer, sem que percebas porquê. Nós não sabemos qual a razão.

Mas acha que Putin quer voltar a uma União Soviética?
Talvez. Não sabemos o que é que ele quer.

Ele diz que a Rússia é que está a defender-se da Ucrânia? É mentira?
Sim. Eles é que começaram a guerra há 8 anos. E agora invadiram-nos no nosso país, invadiram as nossas cidades. Não apenas Donetsk, Luhansk e a Crimeia, mas todo o nosso país. Mas o nosso povo é muito forte e nunca desistirá. O nosso problema é que não temos tantos recursos militares. No primeiro dia destruíram-nos muito equipamento e infraestruturas.
Agora penso que a guerra caminha para o fim porque muitos países estão a ajudar a Ucrânia com equipamento. Acreditamos que seremos vencedores.

Quando os meus amigos saíram de Kiev nos seus carros, no 12º dia [de guerra], a estrada principal com oito faixas estava bloqueada por causa do trânsito e os tanques [russos] atacaram toda a gente

Mas acha que a guerra se aproxima do fim?
Não sabemos quais são os planos dele [Putin]. A Rússia tem sofrido muitas baixas, mas não sabemos quantos militares têm ainda e qual é o seu plano para o futuro. O que sabemos é que o seu plano não está a correr bem. Veja-se o caso de Kiev, Karkiv e outras cidades. Mariupol é uma das que está numa situação mais difícil porque o plano da Rússia passa por conquistá-la. Muitas crianças, mulheres e feridos não têm qualquer ajuda. Sabemos que a situação é muito preocupante, pelo que conhecemos acerca do que fazem os militares russos. Conta-se que mataram crianças e mulheres grávidas que transportavam apenas bagagem. Bombardearam o nosso teatro em Mariupol que tinha escrito no exterior a palavra ‘crianças’ em letras grandes.
Quando os meus amigos saíram de Kiev nos seus carros, no 12º dia [de guerra], a estrada principal com oito faixas estava bloqueada por causa do trânsito e os tanques [russos] atacaram toda a gente.

E os seus filhos viram cenas desse tipo?
Sim.

E ficaram traumatizados?
Sim. No primeiro dia, todos os canais televisivos e os jornalistas do nosso país mostraram essas imagens. Vimos televisão nas primeiras 24 horas. Só se via a guerra na televisão, nas fotografias, na rádio, na internet. Agora sabemos através do YouTube.

Mas vocês testemunharam alguma situação de ataque a civis como a que descreveu?
Vimos o nosso aeródromo e área envolvente a serem atacados. E também prédios a serem destruídos. No dia em que saímos vimos bombardeamentos.

Fisicamente estou aqui, mas a minha alma continua lá

Esperam regressar ao vosso país?
Sim, porque os meus pais e amigos, o meu trabalho, a escola, os amigos dos meus filhos, ficou tudo lá. É difícil. O vosso país é muito simpático, mas sinto que todos os ucranianos se sentem como eu. Fisicamente estou aqui, mas a minha alma continua lá. Posso andar pela vossa fantástica cidade, pela praia, ver o mar, mas não consigo apreciar porque estou sempre a pensar na guerra, nos meus pais, no nosso povo, no nosso país.

Para além da paróquia têm tido mais algum apoio de alguma outra entidade?
Todo o apoio tem-nos sido dado pelo padre Nuno [Tovar de Lemos] porque o do Estado é muito demorado e difícil. No nosso país é mais simples do que no vosso. Estamos há muito tempo à espera dos números de identificação fiscal, de segurança social, etc. E sem eles não conseguimos fazer nada. Abrir conta num banco também foi muito difícil. Esperámos um mês para conseguir.
Não conhecemos todas as regras do vosso país. O governo português concedeu-nos um apoio mensal de 37 euros por cada criança, o que é muito baixo.
O apoio do padre Nuno e da sua Igreja tem sido ao nível do alojamento, alimentação, assessoria administrativa e jurídico-legal porque não sabemos onde nos devemos dirigir para tratar dos diversos assuntos. Temos conhecido muitas pessoas simpáticas que nos têm ajudado com o precisamos.

Precisamos que apoiem todos os ucranianos

E neste momento do que é que mais precisam?
Precisamos que apoiem todos os ucranianos. Temos de falar do nosso país em todos os jornais, canais de televisão e talvez isso possa fazer parar a Rússia.

Família de ucranianos que fugiu da guerra acolhida por paróquia algarvia