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Ao interpretarmos o prosaico verso acima descrito pelo semi-heterónimo Bernardo Soares, adivinhamos um Fernando Pessoa profético mas, também adivinho de “outro” poeta futurista seu contemporâneo, Mário de Sá-Carneiro. E este, por sua vez, dedicando a Fernando Pessoa, veladamente, o poema «7» (“Eu não sou eu nem sou o outro,…”) em fevereiro de 1914, inserto no célebre conjunto de poesias «Indícios de Oiro», e publicados na revista “Nº1” de «ORPHEU», fundadora do «Movimento Futurista» em março de 1915. Seria nessa forma vibrante e profética que, logo depois de Bernardo Soares vaticinar “alguém” (e que seria o próprio Sá-Carneiro), escrevendo “um poema”, decididamente, já teria feito com que “comece a reinar no” tal “Reino…”, O da intemporal e imortalidade poética de Fernando Pessoa.

Ao descobrirmos paralelamente (e em epígrafe inserido), o final do poema «Passos da Cruz» e do mesmo tempo (1914-1916), que seria publicado na revista «Centauro» “Nº1” (Dezembro), Pessoa ortónimo, com as suas magníficas “XIV ” “estrofes”, reproduz o seu vaticinador “calvário” como poeta “paulista” (1) mas, também “Futurista”, e intimamente ligado ao Cristianismo gnóstico e rosacruciano. Esta “Via dolorosa” de XIV “estações”, e estrada processional imitando “Cristo” e “Deus”, no caminho para O citado “Reino” e a que o poeta se entregou ao longo da vida, está bem patente nas múltiplas quadras, de que sobressai a extraordinária relação espaço-temporal de variados versos futuristas.

Dos modernos “sonetos” de F. Pessoa-Álvaro de Campos, fundador do Futurismo português, é universal e terminante, pelos seguintes versos: “E eu sinto que sou o Arco, e o espaço que ele abrange,/ E toda a gente que passa,/ E todo o passado da gente que passa,/ E todo o futuro da gente que passa,/ E toda agente que passará/ E toda agente que já passou. … Realizo Deus numa arquitectura triunfal …”.

É sobretudo através do “Arco” temporal implantado por “ele próprio” entre o “…perfil de outro ser que desagrada ao … actual…”. E ainda através do «EU» maiúsculo contraditoriamente niilista mas, do “Universo” singular e espacial de Fernando Pessoa, ao reafirmar-se precisamente “Outro” in «Passos da Cruz» e, completando-se saudosista: “…Venho de longe e trago o perfil…”. Entre a persistente e religiosa “Minha alma” ou pelas intocáveis “mãos raras” de um deus ou deusa “tocadora” de piano ou tangedor “de harpa” (alusão a «Orpheu»), e que faz outrossim recordar as de “outro” poeta e sua “alma par” mas, sediada em Paris. O também director-fundador da revista «Orpheu», igualmente “feminil”, Mário de Sá-Carneiro.

O “Género” e a “Pluralidade” confundem-se em “Unidade”, outra essência da «Arte Futura» portuguesa, e qualidade e atributo pessoano igualmente “Universalista”. «Sá-Carneiro», e título do poema de F. Pessoa por Lisboa, dedicado ao seu grande amigo finado em Paris, constituir-se-ia finalmente “outro” disfarçado “heterónimo” de “ele-próprio” (Pessoa) e, completando com outra marcante “Geminação” geográfica, através da lembrança dos muitos versos antes trocados por muitas centenas de cartas entre Paris e Lisboa: “… Hoje, falho de ti, sou dois a sós./… Como éramos só um falando! Nós/ Éramos como um diálogo numa alma.” Não poderia ser mais explícito e definidor do conceito “eu-outro”, e acerca do seu «Heteronomismo», envolvendo especialmente o seu “maior amigo” e logo depois do suicídio de Mário de Sá-Carneiro. E constituindo desse modo, um contributo definitivo para o desenvolvimento artístico paralelo da heteronímia literária “Futurista”. O tal “Eu” (Pessoa), minúsculo e simultaneamente niilista mas, envolvendo o “Outro” (Sá-Carneiro), num panteísmo criador duma “Alma Nova” (2) e do “Futurismo português”.

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…(e a ponte sempre à vista)…”.
(F. Pessoa, «Passos da Cruz»)

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Depois, ao longo do «Tempo», e que é igual e alegoricamente a tal “ponte”, essa veia poética prolonga-se e desmultiplica-se esbatendo-se em poesias com os principais heterónimos imaginados (Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares), numa condição estilística “geminada” e, fundamental, de “Arte Futura”. Essencialmente religiosa, a «Arte Luz» é neo-pagã e cristã, testemunhando o “movimento saudosista” (1912-1915) de Teixeira de Pascoais, e herança literária sempre ligada à temática do “Reino de Deus” e do “Cristianismo”, e impresso depois pelo Messianismo sebastianista pessoano. (continua)

Vítor Cantinho

Nota de rodapé: As passagens em “itálico”, e a cores, são expressões, termos poéticos ou excertos de poesias de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares, e ainda citações de outras personalidades identificáveis.

(1) Estilo característico de Sá Carneiro, foi preludiado na poesia «Pauis» de Fernando Pessoa, publicada em 1914 na revista “Renascença” (A. José Saraiva e O. Lopes «História da Literatura Portuguesa», p.1082.)
(2) Título da Revista de poesia fundada em Faro no ano de 1914 (setembro) por Mateus Moreno, e para onde Mário de Sá-Carneiro enviou poemas seus. A revista teve o importante patrocínio de Lázaro Cúmano e familiar de outro grande mecenas de Faro, Justino Cúmano.