Ainda em “Passos da Cruz”, o poeta afirmaria num verso: “Há um poeta em mim que Deus me disse…” e, através “Dum poeta antigo…” presumivelmente pagão («Orpheu»). “Mas doente,…” de “Futuro”, de saudade da «Luz» ou de «Oiro» (…Cesário Verde, Sá-Carneiro…), e já numa condição estilística pagano-cristã e, fundamentalmente profética. Seria esse poeta “antigo” e “doente” também o de um Gonçalo Bandarra ou de outro Luís de Camões, do século XVI? E ainda, Padre António Vieira e do “Barroco” português do século XVII? Ou, naturalmente, um Cesário Verde parnasiano do XIX? Mais seria certamente, a insistente “Minha alma” e as “mãos” delicadas do “Outro” Futurista do século XX e sua alma gémea, Mário de Sá-Carneiro.

*

“…Os outros também são eu.”
(A. de Campos, «Reticências», 1929)

*

Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
…”
(F. Pessoa, «Passos da Cruz», 1914-1916)

*

Geminação” é outra condição técnica literária sempre presente, nessa fremente disposição em “pares” (3), “interseccionista” (futurista) e num “jogo” temporal expressionista e “sensacionista” constante, sobretudo iniciado em 1912, com o “Reino” espiritual e de Bernardo Soares, em agrupamento colorido de “cristais” da mesma espécie literária vaticinadora. Sob a forma de um cintilante caleidoscópio, no seu “quarto” de espelhos, “ele próprio” Fernando Pessoa, em “desdobramentos” e intersecções transparentes e cubistas mas que são, outrossim, futuristas.

É em 1914 que o poeta com 26 anos, “simplesmente” declara ter atingido o período completo da sua maturidade literária, em invenções estilísticas fecundas e através do “seu” criativo e inovador «Heteronomismo». Nascem na sua mente Alberto Caeiro (8 de Março), logo seguido pela «Ode Triunfal» prefigurando-se em Álvaro de Campos, por fim, escreveria “a primeira poesia de Ricardo Reis” outra personalidade inventada e, segundo a exegese e cronologia de outro distinto amigo. O último parágrafo do capítulo I do excelente “Ensaio” interpretativo da vida e obra de Fernando Pessoa (do tal amigo Gaspar Simões), focaria religiosamente logo no início da sua análise crítica estilística, “uma aliança entre cristianismo e o paganismo”, e é lapidar:

«O interseccionismo não passa, afinal, de uma espécie de adaptação do paulismo ao futurismo com evidentes características do cubismo então em franco desenvolvimento. E é assim que se formam, pouco a pouco, a sensibilidade e a estética da geração que veio a ter em Fernando Pessoa o seu principal representante. De facto, quando em 1915 aparece em Portugal o primeiro número da revista Orpheu, já Fernando Pessoa era considerado, na roda dos poetas, pintores, filósofos, prosadores do movimento, um autêntico chefe de fila.» (4)

Dentro desse eclético círculo de artistas nomearia outro seu amigo, Carlos Filipe Porfírio, nessa época por Lisboa, e pintor-poeta algarvio também expressionista, desenvolvendo depois, em 1917, a sua brilhante “pseudo-heteronímia”, num extravagante jogo criativo de “personalidades” inventadas e futuristas (“Nesso”, “Nessos”, “Vivino”, “Neblina”, “Miss Edith”, “Belmino”, etc.). Envolvendo em especial uma entidade mitológica, epónimo(5) de um “Centauro-pintor”, o “Nesso” ou “Nessos”, no singular mas também no plural e, outrossim, pelo menos duas “personalidades” teatrais (“Palmadinhas nos carecas”) e de ambos os sexos: o “Vivino” e a “Miss Edith”. Este conjunto híbrido de “pseudónimos-heterónimos” de Carlos Porfírio, junto com a minimalista e feminil “Neblina” e ainda “outros” “criptónimos” (“Belmino”, etc.), estão todos plasmados em «O HERALDO», jornal literário de Carlos Lyster Franco, anteriormente fundado em Tavira. E são todos e todas personagens idealizadas pelo muito imaginativo “moço” pintor com apenas 21 anos, fazendo surgir por Faro e no Algarve, o “Heteronomismo” pessoano, nas colunas de “Gente nova”, depois, junto à rubrica “Futurismo” criada em fevereiro de 1917. A versatilidade estilística literária e heteronímica, acha-se modelada nos múltiplos heterónimos e títulos (8 poemas de “Nesso” ou “Nessos” e, 26 de “Vivino”, e ainda muitos mais…), que denunciam o tímido poeta e exemplo de “outro” pictórico artista, muito para além das curiosas dedicatórias que revelam os “seus mesmos” pseudo-heterónimos. A “Miss Edith” é um deles, em prosa poética epistolar, constitui outra “Carta…” ficcionada, desta vez enviada e correspondida de e para “Lisboa”.

Posteriormente, Carlos Porfírio, sendo Director-fundador doutra revista capital do “Movimento Moderno” e ao nível internacional, constituíra-se “outro” futurista com a edição de «PORTUGAL FUTURISTA», manifesto lançado no “Natal” de 1917 contendo o extraordinário e actualíssimo “ULTIMATUM” de Álvaro de Campos. Nesse importante conjunto de postulados futuristas, Pessoa experiencia até uma “nova” mentalidade fingida “anti-cristã”, através da “integração da filosofia na arte e na ciência” einsteiniana, e pela hipotética “blague” revolucionária acerca do “desaparecimento” religioso do “cristianismo” e do “humanitarismo revolucionário”. Mas, igualmente implorado com muita trapaça pelo “Ultimatum” belicista e “futurista às gerações portuguesas do Século XX ”, doutro pintor-poeta, José de Almada-Negreiros e discípulo de Filippo Marinetti. Resta tão só referir, que a génese e ideia desta importante revista dedicada à “Arte portuguesa do futuro” estiveram, desde 1915, na mente do outro “apóstolo” de Marinetti e também “célebre” pintor, o genial Guilherme de Santa-Rita.(6)

Nota de rodapé: As passagens em “itálico”, e a cores, são expressões, termos poéticos ou excertos de poesias de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares, e ainda citações de outras personalidades identificáveis.

(3) Técnica também pictórica, adoptada pelo pintor Souza-Cardoso ao dispor, reunidos, dois ou mais “objectos” figurativos, numa conjuntura cinemática futurista única.
(4) João Gaspar Simões in «Fernando Pessoa» “Ensaio Interpretativo da sua Vida e da sua Obra”, p.14. da colecção “A minha vida deu um livro”.
(5) Personalidade real ou lendária, entre os gregos, e da qual alguém adopta o nome. Geminação nominal.
(6) Fernando Pessoa refere mesmo “sua Revista” na “Carta a Santa-Rita sobre a revista deste”, «131» de 23/10/1915 in «Pessoa Inédito».