O padre Domingos Monteiro da Costa, sacerdote da Companhia de Jesus (jesuíta), que este ano celebra 50 anos de sacerdócio – 47 dos quais na paróquia da Mexilhoeira Grande e 63 como jesuíta – diz que não se lembra da altura em que começou a pensar querer ser padre. No entanto recorda que em criança a sua brincadeira favorita ao domingo era “fazer de padre”.

Nascido a 15 de março de 1940 no seio de uma família católica na aldeia do Rego, em Celorico de Basto, foi batizado com dois dias de vida, aos seis anos já tinha feito a primeira comunhão e aos 10 já tinha sido crismado. Com mais três irmãs – duas mais novas e outra mais velha (ainda viva), uma delas religiosa na Congregação das Irmãs Concepcionistas ao Serviço dos Pobres – na altura sabia já que queria ser um padre diferente daqueles com quem convivia e fazia questão de lhes dizer. “Dizia isto porque os padres andavam sempre de volta dos ricos, dos lavradores, e nunca de volta dos pobres. Eu era pobre. Como acólito via que ao darem a comunhão, partiam a partícula pequena ao meio e davam metade aos pobres, enquanto aos lavradores era a hóstia inteira. São coisas pequenas, mas que me marcaram pela distinção que se fazia. Por isso, quando dizia que queria ser um padre diferente era ser um padre para os pobres”, explica em entrevista ao Folha do Domingo.

O pequeno Domingos também constatava que quem frequentava o seminário eram os filhos de lavradores, que eram aqueles que podiam ir estudar. “A escola não era obrigatória, não havia liceus como há hoje e não havia colégios para ir estudar para fora, nem dinheiro para pagar. A maioria deles ia para o seminário não para ser padres, mas para aproveitar o estudo. Os pais dos pobres não tinham dinheiro para pagar a mensalidade no seminário”, conta.

“Quando a professora [primária] disse à minha mãe: «Que pena o seu filho não poder continuar os estudos», eu pensei: «Continuar os estudos, só indo para padre!», acrescenta, lembrando ter perguntado a um vizinho, parceiro de brincadeiras e de orações, se podia ir para o seu seminário. Após o contacto do amigo com o reitor, a sua mãe recebeu um formulário para preencher, mas a inscrição não foi aceite porque “sofria de dores da barriga”.

Mais tarde, foi o então capelão do Hospital da Misericórdia de Felgueiras, padre José Maria Lopes da Fonseca, que o incentivou a falar outra vez com o colega. Foi depois o padre Abel Guerra, reitor da Escola Apostólica de Macieira de Cambra, onde entrou em 1953, que após o examinar lhe disse que estava aprovado e que ia iria para o seminário. Consciente da mensalidade impossível de suportar pela sua família, o pequeno Domingos da Costa convidou o sacerdote para visitar a sua casa e conhecer a sua pobreza. “Nem eu, nem Deus queremos o teu dinheiro. Queremos-te a ti”, foi a resposta do sacerdote que ainda hoje permanece na memória do padre Domingos da Costa.

Tinha então 13 anos quando entrou a 8 de setembro de 1958 no Seminário do Soutelo, Vila Verde, influenciado “pela positiva e pela negativa”. “Deus também age pela negativa, é questão de ler os sinais”, refere o sacerdote, considerando que Deus também se serviu dos padres que lhe deram um mau exemplo. Quem não gostou da decisão foi o pai, na altura a trabalhar e a viver em Aveiro, que chegou a zangar-se com a mãe, e a avó paterna que, “de protesto”, porque queria que o neto continuasse em casa para trabalhar nos campos com ela, foi para junto do filho e por lá ficou sete meses. O pai acabaria por fazer as pazes com a mãe no Natal seguinte e mais tarde acabou por pedir perdão ao filho durante uma refeição no seminário.

Enquanto frequentou a Escola Apostólica de Macieira de Cambra dos jesuítas tinha um mês de férias no verão, aproveitado também para fazer catequese todos os dias. Também no juniorado e no filosofado sempre que havia a possibilidade de fazer o mesmo ou lecionar aulas de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC) nas escolas primárias, inscrevia-se sempre com o falecido padre Arsénio da Silva, com quem veio mais tarde para o Algarve, e com o padre Marino Areias.

Em 1968 candidatou-se a uma bolsa de estudos para ir para a Alemanha durante dois meses aprender alemão. Em 1969 pediu depois outra bolsa para pagar a mensalidade durante os dois anos de estudo de Teologia. Esteve em Frankfurt até 1973, onde também trabalhou. Ajudava os emigrantes portugueses e, nas férias da Páscoa, ia ajudar paróquias alemãs na Semana Santa. Pelo meio aconteceu a ordenação sacerdotal, a 30 de julho de 1972 na Covilhã, na igreja dos Jesuítas.

Em 1973 rumou a Paris, onde esteve até 1975 para estudar Sociologia. Durante um ano viveu por conta de uma paróquia que ajudava nos fins de semana. Nas férias de verão regressava à Alemanha para substituir um colega.

Se não fosse Langen e a minha relação com a Alemanha, a obra do Centro Paroquial não existia, assim como a igreja da Figueira

A 21 de setembro de 1975 veio para o Algarve, tendo assumido a paróquia da Mexilhoeira Grande a 14 de outubro daquele ano, mas ainda foi no ano seguinte trabalhar com os emigrantes portugueses em Dortmund, até que descobriu em 1977 a paróquia de Langen e a relação com aquela comunidade nunca mais se quebrou. Ainda hoje continua a ir nas «férias» anuais de agosto substituir colegas. “É a minha maneira de descansar”, graceja. O sacerdote reconhece que a paróquia da Mexilhoeira Grande tem usufruído muito daquela parceria. “Se não fosse Langen e a minha relação com a Alemanha, a obra do Centro Paroquial não existia, assim como a igreja da Figueira [uma das comunidades pertencentes à paróquia]”, garante.

Nos primeiros tempos de sacerdote, o padre Domingos da Costa teve oportunidade de viajar por diversos outros países como a Bélgica, a Dinamarca, a Itália, a Suécia e a então União Soviética. O sacerdote reconhece ter sido a passagem por tantos países que lhe abriu os horizontes relativamente a um Portugal ainda fechado a tudo o que se vivia no estrangeiro.

Quando chegou à Mexilhoeira Grande, no fervor do Pós-Revolução de Abril, diz ter sido acusado de fascista e recorda a resistência que encontrou. “Comecei a ter guerras com os revolucionários que não queriam que eu fosse às escolas”, recorda entre outras peripécias. “Esta terra mudou de mentalidade fruto também dos 27 anos em que eu andei pelas escolas todas a lecionar EMRC. Deixei de ser professor de filosofia no liceu de Portimão e dediquei-me então às aulas de EMRC em todas as escolas primárias sem ganhar um centavo”, lembra.

Ainda no seminário pensava que quando fosse padre haveria de fazer uma escola para as crianças poderem “ter cada uma a sua cadeira” e chegado à Mexilhoeira Grande constatou que os pais iam para os hotéis trabalhar e os filhos “ficavam na rua”. Lançou-se então na construção do Jardim Infantil que foi o primeiro de caráter público criado no concelho de Portimão após o 25 de abril, ainda antes da Câmara Municipal criar infantários.

Quando vejo aquele casarão ali e eu sozinho, saí de lá. Então transformei aquilo num lar de idosos e acabaram os suicídios

Mas houve uma outra realidade que ainda o incomodou mais. “Havia dois ou três casos por ano de pessoas idosas que se suicidavam por não verem futuro de quem tomasse conta delas na velhice”, relata. Tinha construído a residência do pároco, “feita com dinheiro que foi oferecido pela diocese alemã de Colónia”, composta por uma parte para a comunidade de religiosas que chegou a estar algum tempo na paróquia e outra para os jesuítas. “Quando vejo aquele casarão ali e eu sozinho, saí de lá. Então transformei aquilo num lar de idosos e acabaram os suicídios”, refere.

Porque não uma aldeia onde os casais têm um T1 ou um T2 para um casal e um filho deficiente?

Por outro lado, tinha ainda outros casos que o deixavam angustiado. “Casais que tinham filhos deficientes perguntavam-me muitas vezes: «quando eu morrer onde é que meto o meu filho?». Tive casos de casais em que morria o marido e a mulher tinha de ir para outro quarto que não o seu com outra senhora e, às vezes, acabava por sair [da instituição] quando ainda tinha forças para isso. Porque não uma aldeia onde os casais têm um T1 ou um T2 para um casal e um filho deficiente?”, contou, referindo-se ao que originou o projeto da ‘Aldeia de São José’ em Alcalar, uma ideia que teve em 1987, após uma visita com 65 jovens à Casa do Gaiato em Setúbal.

A construção da ‘Aldeia de São José’ “foi providencial”. “Foi uma obra de Deus, foi uma inspiração do Espírito Santo, estou convencido disso

A sua ideia consistia na criação de um espaço onde os idosos pudessem continuar a viver como sempre viveram e inclusivamente pudessem ter animais e hortas, mas com acompanhamento técnico. O sacerdote diz que a construção da ‘Aldeia de São José’ “foi providencial”. “Foi uma obra de Deus, foi uma inspiração do Espírito Santo, estou convencido disso. E foi uma maneira de credibilizar, de alguma maneira, a paróquia que estava em último lugar quando o pároco foi expulso e viemos para aqui, quando nenhum padre da vigararia quis assumi-la. O sinal de Deus mais visível aqui na paróquia é a ‘Aldeia de São José’ de Alcalar”, acrescenta, considerando-a a principal obra que marca estes 50 anos do seu ministério e que arrumou de vez com a ideia que tinha de ir como missionário para a então União Soviética. “Tinha estudado russo quando estive na Alemanha com a ideia de quando o muro [de Berlim] caísse oferecer-me para ir como missionário para a União Soviética. Comecei a construção a 16 de maio de 1989 e o muro caiu a 11 de novembro de 1989. E eu pensei então: «A minha Rússia é aqui».

“A paróquia hoje está bem-conceituada. Costumo dizer que foi a Igreja que pôs a Mexilhoeira Grande quer no mapa civil, quer no mapa religioso como algo de significativo”, sustenta, lembrando que a obra tem sido destino de formação e estágio para muitos estudantes.

O padre Domingos da Costa lamenta que apesar de ao longo destes anos a «aldeia» ter sido visitada por muitas pessoas para perceberem o seu modelo, apenas tenha sido replicada no estrangeiro, mas para “ricos”. O sacerdote refere que na instituição os utentes são todos “pobres” que pagam de mensalidade 85% da sua reforma. “Não temos ninguém a pagar mais de 700 euros”, assegura, acrescentando que a sustentabilidade “não é problema”. “O infantário dá prejuízo, a creche também e o ATL igual, pois só recebemos as crianças mais pobres, 85% das quais oriundas de Portimão porque lá não há lugar e 60% de famílias desestruturadas. Se não fosse a «aldeia» de Alcalar teríamos fechado já há muito tempo”, assegura.

O aniversariante diz nunca ter auscultado os superiores sobre a obra social que construiu e que as decisões foram sempre tomadas por ele. O sacerdote, que chegou a ter um projeto de criação de uma «aldeia» para recuperação de toxicodependentes no Carriçal que diz não ter avançado por causa de “politiquices” e outra «aldeia» para crianças no pré-escolar, reconhece que a pastoral foi sempre a sua paixão. “A obra pastoral esteve sempre em primeiro lugar”, garante o sacerdote, considerando que “a formação religiosa nos jesuítas era conventual”. “Eu não via os jesuítas com pastoral nenhuma”, constata, acrescentando que inclusivamente e durante muito tempo “manteve-se a tradição de que as paróquias não eram para jesuítas”. “Em 1995 é que saiu um decreto a dizer que o trabalho paroquial correspondia ao nosso carisma jesuítico”, precisou, acrescentando que, não obstante essa realidade, nunca pensou em sair da Companhia de Jesus para ser padre diocesano.

Quando preparei o diácono Nuno [Francisco] era com a ideia de ele ficar aqui pároco depois de eu não poder ou depois de eu morrer

O padre Domingos da Costa diz ter preparado a paróquia da Mexilhoeira Grande “para viver sem padre”. “Tive receio que se esta obra social não fosse entregue a gente com espírito cristão ela fosse ao charco. Quando preparei o diácono Nuno [Francisco] era com a ideia de ele ficar aqui pároco depois de eu não poder ou depois de eu morrer. Essa foi a minha ideia principal”, afirmou, considerando que o diácono e a esposa fizeram parte da geração dos anos 90 do século passado e da primeira década de 2000 que classifica como “anos de ouro”, “marcantes para a paróquia”.

Está tudo assumido agora. Posso morrer descansado. Falta-me ainda o Jardim Infantil. Gostaria de ter lá uma pessoa assumidamente cristã com a mentalidade de Santo Inácio de Loyola

O sacerdote diz que se tem desligado “praticamente de tudo” porque o seu objetivo tem sido encontrar e preparar gente para assegurar o futuro das obras sociais e assumir o seu funcionamento. “Está tudo assumido agora. Posso morrer descansado. Falta-me ainda o Jardim Infantil. Gostaria de ter lá uma pessoa assumidamente cristã com a mentalidade de Santo Inácio de Loyola”, afirma.

O pároco considera que foi o que viveu que o foi moldando e diz que o que fez “foi sempre para bem das pessoas”.

O padre Domingos da Costa lamenta que tenham sido precisos 40 anos para os jesuítas formarem uma comunidade no Algarve, mas considera que a decisão do então superior provincial padre José Frazão “foi um rasgo” após uma “travessia no deserto”. “Quando o padre Arsénio morreu e a paróquia [de Nossa Senhora do Amparo em Portimão] foi entregue ao pároco da matriz, perdi toda a esperança”, confessa, considerando como “outro sinal de Deus” o pedido do bispo do Algarve para voltar a assumir aquela paróquia.

Em jeito de balanço diz dar “graças ao Senhor” pela vida que lhe deu durante estes 50 anos de sacerdócio e “também pelas contrariedades”. O sacerdote celebra as suas bodas de ouro sacerdotais no dia 30 deste mês, mas assinala a efeméride logo no dia 27 na Alemanha. No dia 13 de agosto vai assinalar o aniversário na sua terra natal e nos dias 10 e 11 de setembro na Mexilhoeira Grande. No dia 10, a Missa será celebrada pelas 18h30 na capela da ‘Aldeia de São José de Alcalar’ com os colegas jesuítas, seguida de um jantar, e no dia 11 a Eucaristia terá lugar às 11h na igreja matriz com a comunidade, seguida de almoço partilhado no adro da igreja.