
O procurador da República João Luís Gonçalves defendeu na passada quinta-feira que Jesus terá sido condenado pelo crime de rebelião pública, justificado pelo letreiro com a inscrição “Rei dos Judeus” colocado sobre a sua cruz.

Na sua palestra no Seminário de Faro, sob o tema “O processo civil de Cristo”, em que abordou a legalidade do julgamento de Jesus, o magistrado do Ministério Público considerou que, sendo assim, a condenação terá sido dada pelo tribunal romano (Pretório) e não pelo tribunal judaico (Sinédrio).
Referindo-se às funções dos dois tribunais, o procurador da República no Tribunal de Família de Faro explicou que o Sinédrio tinha competência para resolver questões religiosas, caso a acusação tivesse sido apenas a de que Cristo dizia ser o filho de Deus. Para o orador, o processo voltou ao Pretório porque sobre Jesus recaiu também a acusação de querer ser rei.
Contudo, João Luís Gonçalves disse haver outras interpretações que consideram que Jesus terá sido condenado antes de ser preso e que defendem que o Sinédrio já teria reunido e já teria decidido a sua condenação, limitando-se o Pretório a dar cumprimento à pena. “Há quem diga que nem sequer se tratou de um julgamento, mas que foi um homicídio”, acrescentou, explicando que “segundo as regras da altura, entre a sentença e a execução tinha que se aguardar pelo menos um dia”. “Ora isso não foi respeitado no processo de Cristo, segundo a versão dos evangelhos”, constatou.

A este propósito, o magistrado recordou que o Sinédrio funcionava com cerca de 23 membros ordinários e 71 extraordinários, considerando que estaria encerrado à noite. “Era impossível chamar aquela gente toda a meio da noite”, admitiu, acrescentando que “os evangelhos contêm, do ponto de vista jurídico, muitas imprecisões”, o que leva muitos a concluir ser impossível que o julgamento de Cristo tenha acontecido como está escrito. “O objetivo dos evangelhos não foi reproduzir o processo, mas a divulgação da mensagem. Por isso, é provável que não tenha acontecido como está descrito”, advertiu.

Concordando ser “impossível que tenha acontecido tudo numa noite”, fundamentou também com o trajeto de cerca de cinco quilómetros percorrido por Jesus que considerou demasiado extenso para tão pouco tempo.

João Luís Gonçalves disse que há também quem ponha em causa se Pilatos “era tão ingénuo como parece”. “Havia muitas queixas [dos judeus] contra Pilatos e a sua vida política estava por um fio. Consta que Pilatos se aproveitou da situação de Cristo para fazer as pazes com as autoridades judaicas e parece que os judeus aproveitaram o processo de Cristo para pôr à prova Pilatos”, afirmou, acrescentando que “também há quem diga que os evangelistas, consciente ou inconscientemente, pretenderam dar uma versão benévola” do governador romano. “Há quem dê a explicação de que os evangelistas não quiseram culpar Pilatos para que a palavra de Cristo se divulgasse mais facilmente”, afirmou, lembrando que “mesmo assim os cristãos foram perseguidos”.
O magistrado contou que, motivado por estas questões, “um dos primeiros processos” que deu entrada no Supremo Tribunal de Israel – instalado em setembro de 1948, após a criação daquele Estado em maio daquele ano – foi um pedido de revisão da sentença de Jesus. “Do ponto de vista jurídico invocavam as várias irregularidades do julgamento de Cristo e, do ponto de vista histórico, fundamentavam que a Palestina estava ocupada por uma força estrangeira (romana)”, explicou, acrescentando que “o Supremo Tribunal acabou por indeferir o pedido, justificando que “Israel, formalmente, nunca condenou Cristo” porque “quem condenou Cristo foi o tribunal romano”. “Se não havia condenação, não podiam anular uma coisa que não havia”, explicou João Luís Gonçalves, acrescentando que outra dificuldade constatada teve a ver com a falta de documentos originais do processo de Cristo. O procurador da República adiantou que, por causa de um jornal inglês que se referiu a este pedido de revisão da sentença de Jesus, o Supremo Tribunal israelita recebeu inúmeras cartas de todo o mundo, umas a aprovar e outras a discordar da decisão judicial.

João Luís Gonçalves, que fez um enquadramento geral sobre organização política e jurídica no tempo do império romano, centrou-se na perspetiva de Jesus enquanto cidadão, abordando os seus direitos e deveres, bem como as questões suscitadas pela anulação civil do seu processo, sobre o qual disse haver “muitas perspetivas que se podem abordar”. Pese embora o objetivo da sua palestra fosse uma reflexão sobre o processo de Jesus, o procurador da República advertiu que este, bem como a sua vida e a sua mensagem “não se explica por regras jurídicas”.
João Luís Gonçalves é natural da Madeira e foi seminarista durante nove anos, sete no Funchal e dois anos no Seminário Maior do Porto. O procurador da República, que já foi assessor do Ministério da Justiça de Timor-Leste, publicou em 2002 um livro que analisa o julgamento de Cristo e editou uma outra publicação em 2008 com uma peça de teatro, intitulada a “Revisão da sentença de Cristo”, constituída por uma discussão entre advogados para aferir se a sentença é ou não legal e se esta deve ou não ser anulada.