O Algarve tem cerca de meia centena de imagens de Cristos Mortos, na sua maioria pertencentes às paróquias, mas também a Ordens Terceiras, a Misericórdias e a igrejas municipais, que estão a ser alvo de um estudo radiológico que permitirá aceder a um novo patamar para a preservação daquele património escultural do sagrado e da cultura.

A primeira dessas imagens, associadas à celebração da Semana Santa, particularmente à Procissão do Enterro do Senhor, a ser alvo de uma tomografia computorizada (a vulgar TAC) foi a da igreja da Misericórdia de Tavira, numa iniciativa em parceria com o historiador de arte Daniel Santana, da Câmara Municipal. Seguiu-se a da igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo, em Faro, pertencente à Ordem Terceira e esculpida pela mão do principal e mais famoso escultor e entalhador barroco algarvio: Manuel Martins.

Foi então que o promotor do projeto, em colaboração com o diretor do Museu Municipal de Faro, resolveu acrescentar dimensão ao desafio. “Vamos ser ambiciosos e estudar todas as imagens de Cristos Mortos do Algarve”, conta o médico radiologista Jorge Pereira ter proposto a Marco Lopes, diretor daquela instituição. “Na altura, arroladas seriam umas 35 imagens. Entretanto, já surgiram mais umas quantas e são quase 50. Não temos 50 ainda feitas, mas não faltam muitas. Faltam três ou quatro porque é preciso vencer algumas barreiras, mas será seguramente para breve”, explicou no passado sábado em Faro, na apresentação do catálogo da exposição sobre a obra de Manuel Martins, lembrando que a imagem mais pequena “tem cerca de 25 centímetros de comprimento e o maior tem quase 1,72m”.

O médico radiologista Jorge Justo Pereira • Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Apaixonado pela cultura, pela arte e, de modo particular, pelo património de uma região que não o viu nascer, mas à qual se encontra ligado por raízes ancestrais e que adotou há muitos anos para viver, o médico Jorge Pereira tem prestado este serviço no seu consultório em Tavira sem receber um cêntimo.

Mas para perceber como teve início este “mecenato” é preciso recuar cerca de 12 anos. “Começou como uma curiosidade pessoal, mas também por ter conhecimento da necessidade que um casal de arqueólogos tinha quando estava a desenvolver os seus estudos em Tavira”, lembrou, explicando que as primeiras foram “pequenas experiências” ligadas àquele ramo do estudo da história, concretamente com achados de cerâmica com destaque para o trabalho relacionado para o célebre “Vaso de Tavira”.

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Daí à passagem para a imaginária foi um pequeno passo. Desses trabalhos iniciais, com a colaboração dos técnicos da Câmara de Tavira, destaca também o estudo da imagem de Santa Ana da ermida em Tavira com o mesmo orago, uma “das mais antigas imagens de madeira do Algarve”. Outro exemplo que evidencia foi o exame que fez à imagem ligada ao culto mariano de maior expressão no Algarve, de Nossa Senhora da Piedade de Loulé, popularmente evocada como Mãe Soberana. “Veio a Faro fazer um restauro e depois deu uma escapadinha a Tavira para fazer o exame onde pudemos descobrir vestígios inclusive dos danos que ela, provavelmente, sofreu no grande terramoto de 1755. Conseguimos fazer inferências com alta probabilidade a partir deste estudo que fizemos”, contou.

O estudo dos Cristos Mortos, iniciado há cerca de três anos, é, portanto, o último trabalho do radiologista que tem já dezenas de trabalhos radiológicos realizados no âmbito da arqueologia e da história da arte. “Quando elaborámos o projeto, apresentámo-lo ao nosso bispo D. Manuel que deu logo todo o seu apoio”, explicou ao Folha do Domingo, mostrando-se, todavia, compreensivo com a “resistência” de “alguns sacerdotes” ao projeto que entende ser resultante de “algumas experiências que há no país que não são muito boas”.

O médico realça que este trabalho tem permitido “descobertas fabulosas” e destaca, por exemplo, o Cristo Morto da paróquia de Aljezur como “dos melhores do Algarve”. “É uma peça surpreendente”, garante.

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Entusiasta da “radiologia como método auxiliar de diagnóstico também na conservação e restauro” por permitir que os técnicos “saibam qual o terreno que pisam”, Jorge Pereira destaca a importância deste trabalho “para memória futura”. “Pode ser muito importante daqui a 50 ou 100 anos para alguém que sinta a necessidade de fazer uma comparação”, sustenta, acrescentando que o levantamento radiográfico permite fazer uma reprodução tridimensional da peça, o que poderá ser útil em caso de uma perda por acidente ou por furto ou para a execução de uma cópia.

O radiologista adianta que o projeto deverá resultar na publicação de uma análise comparativa dos dados obtidos a avança que o historiador de arte Francisco Lameira “está muito entusiasmado e vai colaborar também”. “Que eu tenha conhecimento, mesmo na Península Ibérica, este trabalho nunca foi feito. Temos esta oportunidade de o Algarve poder estar na linha da frente e ser de alguma forma inovador neste tipo de atuação”, refere, acrescentando não ser o único radiologista em Portugal a fazê-lo, o que levou à criação, junto da Sociedade Portuguesa de Radiologia e Medicina Nuclear, do Núcleo de Paleoradiologia que atualmente coordena.

Jorge Pereira diz que o trabalho constitui “um fabuloso cartão de visita sob o ponto de vista cultural” para a região. “Esta é uma região que tem um património muito rico, muito pouco valorizado e nós temos de saber «vender» o Algarve, não só nas suas vertentes turísticas e do clima. É, cada vez mais, importante «vendermos» o Algarve cultural que é de uma riqueza fabulosa, muita dela esquecida. Estamos a contribuir para preservar e descobrir algum desse património”, conclui.

O radiologista Jorge Pereira (D) com a diretora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, Sandra Costa Saldanha (E) • Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

A diretora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja que “estes exames complementares de diagnóstico e de análise são essenciais” e acrescenta que “não se pode fazer história da arte sem os considerar”.

A diretora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, Sandra Costa Saldanha • Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Sandra Costa Saldanha destaca que “a utilização destas novas tecnologias aplicadas as obras de arte” com “exames não invasivos que possibilitam a obtenção de resultados e de informações materiais das obras de arte é extremamente importante, não apenas para a conservação e restauro, mas também para a investigação e para o estudo destas obras”.