Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

O presidente do Dicastério para a Nova Evangelização da Santa Sé alertou esta segunda-feira o clero do sul do país para a atual “transformação antropológica” que “contempla a promoção de um puro individualismo”: o “fenómeno cultural do narcisismo”.

Na sua reflexão sobre o tema “O Homem em crise: O desafio das Antropologias”, D. Rino Fisichella disse aos bispos, padres e diáconos das dioceses do Algarve, Beja, Évora e Setúbal, que estão a realizar em Albufeira a sua formação anual, que “o que se está verificar, de facto, é o cume do individualismo que no caso do narcisismo evidencia o nascimento de um traço até agora inédito do indivíduo nas relações consigo mesmo, com o próprio corpo, com os outros, com o mundo”.

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Considerando o narcisismo “uma deriva do niilismo” que “fez a sua entrada triunfal sobretudo no Ocidente”, o colaborador do papa disse tratar-se de “um recurvar-se do homem sobre si mesmo, numa forma de autorreferencialidade que se torna norma de vida e critério de julgamento” e que está a levar à presente “transformação histórica epocal”. D. Rino Fisichella explicou que esta “entusiasma de emotividade os que se contentam com o carpe diem para se iludirem de viver livres e felizes”, “desorientando o pensamento habituado a refletir e a ler com racionalidade os acontecimentos”.

“Tanto o individualismo como o egocentrismo não são fenómenos novos. Noutras épocas históricas já se verificaram fenómenos semelhantes. O que verificamos nestes anos, no entanto, toma a forma de um narcisismo exacerbado que pouco a pouco destrói a personalidade”, lamentou, criticando que esta seja identificada com o corpo que é elevado “à condição de um verdadeiro objeto de culto”.

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Na formação com cerca de 120 participantes, o orador disse que “o medo de envelhecer e morrer é uma tessela fundamental no mosaico do narcisismo” e que, por isso, se procura “combater os sinais da decadência” com “uma permanente obra de reciclagem de si mesmo, de contornos um tanto ou quanto tristes devido à falta de vontade de aceitar a condição existencial de cada um”. Neste sentido, criticou a “a ilusão de uma juventude perene, protegida e reciclada em cada aniversário, como se o tempo tivesse parado”.

“É talvez esta mistura que faz com que surja a trágica tendência, cada vez mais manifesta, de extremar as formas de agressão, de predomínio, de sujeição e de possuimento nas relações interpessoais”, acrescentou, frisando que “a condição narcisista não exclui o outro, mas deseja vê-lo construído à sua medida e a seu gosto”. “Quando isso não é possível, a solução passa a ser a fuga dos sentimentos, para não se desiludir, a par da exaltação do sexo do tipo «morde e desaparece»”, sustentou, explicando que “as relações deixam de ser inter-pessoais, para passar a ser inter-individuais, privadas de afetos profundos e estáveis, preferindo-se viver sozinho de modo a não se sentir vulnerável e, assim, desenvolver a própria independência fictícia”.

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O arcebispo advertiu, contudo, os membros do clero que eles próprios não permanecerem imunes àqueles procedimentos. “Quantas vezes estes comportamentos são também os nossos, porque também nós somos filhos do nosso tempo e colocamos na nossa pastoral as mesmas linhas de autorreferencialidade que minam a evangelização pela base”, observou.

Como exemplo da “tendência narcisista deste momento cultural”, referiu-se à “moda da selfie”, considerando que “já não estamos perante um simples disparo fotográfico, que a tecnologia tornou possível com alguns contornos de indiscutível originalidade”. “A selfie, numa análise mais psíquica, é o desejo de se auto-fotografar sempre, onde e com quem quer que seja”, afirmou, acrescentando que “a geração que se vê ao espelho quer selar com uma selfie o retrato de si mesma”.

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Lamentou também “a procura de experiências sempre novas e a obsessão por um presencialismo de contornos patológicos”, acrescentando que “o sentido de omnipotência ilude de tal modo, que conduz à impotência”.

Na sua reflexão, D. Rino Fisichella explicou que esta “transformação antropológica” assenta no “grande fenómeno da «cultura digital»” que usa exatamente os mesmos termos da Igreja, mas “com significados diferentes” e que, “além de ter relativizado o conceito de verdade, parece que varreu os próprios conceitos de ‘tempo’ e ‘espaço’” que se tornaram “fenómenos totalmente evanescentes”.

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Por outro lado, o orador aludiu ao “fenómeno individualista” que “avança com as suas pretensões, que se vão impondo todos os dias nas legislações, sem a mínima perceção do limite que consigo transportam”. “A escatologia individualista alimenta-se do alargamento da esfera privada, da progressiva erosão do compromisso social, da permanente exigência de direitos, e do desamor por toda a espécie de responsabilidade política. Uma mistura explosiva que, além da desagregação, traz consigo a desestabilização de uma personalidade madura e responsável”, alertou, acrescentando que “esta perspetiva não se limita à condição do indivíduo em si” mas, “como um protótipo, estende-se à própria sociedade que vem a construir-se no horizonte de um «individualismo social»”.

“Parece que, hoje, o indivíduo é conduzido numa situação flutuante, em que faltam pontos de referência estáveis e indicações seguras que permitam um percurso de identidade madura. De certo modo, estamos perante uma fluidez que deriva da «sociedade líquida», incapaz de produzir formas alternativas”, prosseguiu.

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D. Rino Fisichella alertou para o erro de a Igreja “não querer entrar no âmbito das questões afrontadas e deixar que o tempo passe, mostrando indiferença e superioridade”. “Seria um grave dano para a missão de evangelização que a Igreja possui e da qual não pode prescindir”, considerou.

Esta terça-feira, aquele responsável da Santa Sé apresentará uma segunda reflexão sobre o tema “A autonomia das realidades terrenas: secularismo e/ou secularização? Que evangelização para o Mundo Hodierno?”. As jornadas de formação do clero do sul, promovidas pelo Instituto Superior de Teologia de Évora, sobre o tema “O homem: caminho de Cristo e da Igreja”, prolongam-se até à próxima quinta-feira.