(Nota: as palavras em “itálico” são expressões de Fernando Pessoa ou de outra “pessoa” e, seu heterónimo)
«Três coisas, pois, são necessárias à ave para voar, convém a saber: Asas, Vida e Ar. (…) Asas sem Vida não podem ter movimento (…) O nosso invento tem Asas, tem Ar e tem Vida.»
(Bartolomeu de Gusmão, descrevendo enigmaticamente a “passarola voadora” e, a fórmula “trialéctica” de “viajar” pelo Ar, nos inícios séc. XVIII)
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«Voo outro _ eis tudo.»
(Fernando Pessoa, carta a Gaspar Simões, 1931)
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Cerca de 1915, Mestre Fernando Pessoa teria escrito; “o que é preciso é cada um multiplicar-se por si próprio”, e reafirmando; “sou variamente outro de que um eu não sei se existe” ou “se é esses outros”. E ainda; “tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.” “Quanto mais cresço, menos sou eu. Quanto mais me encontro, mais me perco. Quanto mais me sinto mais vejo que sou flor e ave e estrela e Universo. Quanto mais me defino, menos limites tenho. Transbordo Tudo.” Atrevendo-se, por fim, a afirmar; “no fundo sou o mesmo que Deus”. E ainda a arvorar; “serei eu próprio toda uma literatura”.
No mesmo ano de 1915 registaria; “assim publicarei, sob vários nomes, várias obras de várias espécies, contradizendo-se umas às outras.” Anteriormente, em 1914, complementaria essa concepção universalista, com a frase; “vivo-me esteticamente em outro”, e contribuindo para a definição estilística universal-cósmica acerca do «Heteronimismo pessoano». A heteronímia, faz parte integrante do “Futurismo” literário lusitano. Com esse recurso estilístico, remataria o Mestre, finalmente, um axioma teológico ainda anterior ao ano de 1913; “Deus sou eu ”.
O antagonismo pessoano ao “niilismo” de Marinetti, foi travado em oposição estética ao italiano e, característica também “Futurista”. Esse pacífico combate foi efectivado pela filosofia teológica Futurista de Fernando Pessoa, em contraposição ao lema “niilista” (acerca do “nada”), e que o filósofo ateísta Nietzsche proclamara muito antes, aventando até a “morte de Deus” e, “da Poesia”. Esta mesma posição acerca do “Nada” e referente ao ateísmo europeu, fora entretanto propagado em Paris, desde 1909, por um dos fundadores: Filippo Marinetti.
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«Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza é Tudo …»
(Álvaro de Campos, 1935)
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Através do principal Heterónimo “monoteísta”; “Álvaro de Campos” (“ele mesmo”) e, através da Poesia Futurista incluindo “ele-próprio” (Fernando Pessoa “ortónimo”), essa noção ambivalente entre o “Eu-Outro”, (hifenizada também com Mário de Sá-Carneiro), é ou são simultaneamente muito mais que “dois poetas” (“Ultimatum de Álvaro de Campos”) e, “cada um com quinze ou vinte personalidades”. Uma “sociedade inteira dentro de si” ou uma “multidão” como diria Miguel Unamuno, e essa é a norma expressiva do “Futurismo” em Portugal. Contudo, não fosse “ele-mesmo” o cósmico “Pessoa-Campos”, em surpreendente jogo antinómico “futurista”, aplicando ainda uns brevíssimos versos também “niilistas”, e anulando de modo mais completo o seu “eu”, numa breve fase poética, pelo exemplo em “Tabacaria”; «Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada. (…)»
Voltei a escrever sobre este tema fundamental da nossa Literatura por ter achado, entretanto, as preciosas «Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro» de “Álvaro de Campos”, e organizadas diligentemente por Teresa Rita Lopes. Nelas reconfirmei o que neste jornal já escrevi; o «Heteronimismo pessoano» configura um estilo e uma estética “Futurista” muito próprios. Estando intimamente ligada aos vários aspectos bíblicos, descobrem-se nesse facto plumitivo um “Christismo” primitivo pessoano mas, contraditoriamente neopagão. Essa temática religiosa fundamental, é característica deste “Movimento” literário em Portugal. O tema do “Paganismo” é, tal qual como o “Heteronimismo”, outra formulação estilística literária concernente ao “Futurismo” lusitano. Acham-se nos múltiplos versos pessoanos diversos deuses, e todos numa dinâmica clássica literária de complementaridade, inserida na hodierna forma de visitar, retrospectivamente, também o “Passado”. O “viajar” pelo sentimento do “Tempo”, seria, paralelamente, um jogo espacial. Tal qual como a representativa imagem escultural da divindade pagã; “Jano”, a da cabeça bifacial que contempla e representa simultaneamente; o “Futuro” (face da frente) e o “Passado” (face de trás). Essa relação cíclica espácio-temporal também se acha no calendário romano, e seria atributo pelo “nome” ao primeiro mês do ano (“janeiro”), limitando o “começo” (do “Futuro”) mas, também o seu “fim” (do “Passado”).
Fragmentariamente, essa herança estética literária camoniana, seria reposta através de vários “deuses” pelo novo paganismo pessoano mas, depois congregados em “Um” só “deus”; O próprio Fernando António Nogueira Pessoa que reúne “em Si ”, através doutro mestre; “Alberto Caeiro”, e encontro de todos esses “outros” fingidos poetas e “discípulos” (Reis-Campos-Mora…). Mas, utilizando até a conhecida fórmula estilística “niilista” e, ao apelidar-se de forma antinómica a “si”; “ninguém”.
Esta marcante alusão é reveladora de um sebastianismo por descobrir, tradição poética lusíada, também configurada na obra teatral de Almeida Garrett; “Frei Luís de Sousa”, e introduzido pela característica principal do messianismo literário português através de Gonçalo Bandarra.
Na nota (20) do pequeno mas, extraordinário livro «N. R. M. C.», o próprio Pessoa junto com Campos-Caeiro, em “Trialéctica” (espécie de “diálogo absoluto”) reafirmaria acerca do Poema “sobre o Menino Jesus” («O Guardador de Rebanhos») aquilo que também “ele-próprio” Poeta confessara; o de que “não seria capaz de escrever agora, em ocasião nenhuma.” Achámos, igualmente, neste mesmo livro organizado por Teresa Rita Lopes (T.R.L.), outras confirmações da relação com um “novo” conceito emergente de “Alma”, tema principal “Futurista” do poeta Mário de Sá-Carneiro mas, também adoptado pelos “jovens bardos” (poetas de Faro do jornal «O HERALDO»).
Renasceria essa ambiguidade também em relação com o “Mestre”, ora em “Alberto Caeiro”, uma espécie de “Orpheu-Cristo” pagano-cristão, ora noutro “Fernando Pessoa” e “cristão gnóstico”. Numa orgânica cristã ou noutra “irmandade” greco-romana, através dos vários e ficcionados heterónimos, o Poeta do “Sebastianismo” de «MENSAGEM» achou desse modo uma religião filosófica fundada em “Alberto Caeiro” (mas, geminadamente com Sá-Carneiro e, em “Trialéctica”), e seria este o poeta eleito como: “Mestre”. Elogio encapotado a Sá-Carneiro? Ou referência à ponta de uma pirâmide… que tem sempre na base de si, dois-três-quatro “poetas” e “filósofos”, ou até “discípulos” ou “evangelistas”, e inventados “nomes” em constante “Trialéctica”.
A “trindade” (Caeiro-Reis-Campos) amoldada pelos principais heterónimos segundo T. Rita Lopes ou os “70” discípulos referidos no “Novo Testamento” do antigo “Evangelho de S. Lucas”, foram já ultrapassados (“72” segundo J. Martins Cabrita e R. Zenith), muito para além dos mais de “100” heterónimos já detectados por outros estudiosos, e excedendo os seus “6” principais “discípulos” (Caeiro-Reis-Campos-Mora-Guedes-Soares). Esta numerologia são referências bíblicas, tão ao gosto de “Álvaro de Campos Futurista”, heterónimo assumidamente “monoteísta”, e que mencionou a “Bíblia”, afirmando, por fim, de modo confessional: “Creio em Deus” (n. 14). E até “S. Francisco de Assis” é evocado, numa relação com a natureza e o “Naturalismo” literário mas, representado por um “Alberto Caeiro” (n. 18).
Se tivesse que indicar um dos “heterónimos” e um livro de Fernando Pessoa que fosse mais congénere a “ele-próprio”, não hesitaria em indicar “Bernardo Soares” e o seu «Livro do Desassossego». Nunca esquecendo o coautor: “Vicente Guedes”. O «L. do D.» é a meu ver quase autobiográfico, e seria também assinado por “terceiro” e, pelo Poeta ortónimo. Este «Livro», sendo constituído por “fragmentos” de Pensamentos, de “fragmentos” de Ideias, e por “fragmentos” da ainda insondável Filosofia do próprio Poeta ou por interposta “pessoa” heterónima, é no entanto, o mais acusado pela semelhança ao principal “nome” de algarvio; “Álvaro de Campos”, “ele-mesmo”.
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Quem dera que houvesse
Um terceiro estado pra alma, se ela tiver só dois…
Um quarto estado pra alma, se são três os que ela tem…
(«A Casa Branca Nau Preta», Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, 1916)
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(continua)
Vítor Cantinho