Gosto muito de música! Por isso, passo grande parte do meu dia a ouvir música. Acho que a música é o melhor meio para se transmitir ideais e valores, sendo um óptimo retrato social da nossa forma de viver e encarar a vida nos dias que correm.
Na última década têm surgido muitos projectos musicais em Portugal de muito boa qualidade. Aliás, penso que é opinião unânime que a música portuguesa tem dado um salto qualitativo nos últimos anos. Os meios são mais evoluídos, há mais publicidade e apoio radiofónico, enfim, têm havido condições para o surgimento de cantores e projectos que colocam toda uma nova geração de músicos portugueses no caminho do sucesso. O projecto "Deolinda" enquadra-se perfeitamente dentro desta nova geração de sucesso. Música alegre, com raízes na música tradicional portuguesa, reaproximaram o público jovem da boa música cantada em português. Ana Bacalhau e companhia são jovens e cantam para jovens como eles. Com letras irónicas e divertidas, criaram empatia com o seu público desde o início. Percebem e falam a sua linguagem, porque partilham as mesmas alegrias e desesperanças!
Porém, essa sua perspicácia e astúcia para dizer numa letra musical aquilo que é o retrato social de uma sociedade, os seus sentimentos e a forma como esta leva a sua vida, atingiram uma nova fase. Depois de uma música no seu primeiro álbum intitulada "Movimento Perpétuo Associativo", que retratava a diferença entre a palavra e a acção dos Portugueses, no seu último concerto nos coliseus do Porto e Lisboa cantaram pela primeira vez a música "Parva que eu sou!" que retrata, com extraordinária exactidão, os sentimentos de milhares de licenciados que estão no desemprego e que, depois de longo estudo, não têm mais perspectivas de vida para além de estágios não remunerados, ou na melhor das hipóteses, a do trabalho precário onde impera os recibos verdes.
Ao contrário do que têm afirmado alguns ilustres "doutores" da nossa "praça", a música "Parva que eu sou!" do grupo Deolinda não é uma música pessimista nem passa a ideia errada de que não vale a pena estudar. Tem, sim, uma letra realista! E mesmo que assim não fosse, merecia ser analisada, porque ela mostra os sentimentos de uma geração que, apesar do estudo, sente que não tem condições para ter um emprego digno. Não sendo uma música de intervenção, é uma música que apela à uma intervenção na sociedade para que nela surjam oportunidades para todos. É triste quando uma pessoa estuda durante anos algo que depois não consegue rentabilizar ao longo da sua vida. E é a muitos destes (e a muitos dos que engrossam os números do desemprego) que a canção "Parva que eu sou" assentou que nem uma luva. Nas redes sociais, nas escolas, nas universidades, os mais jovens reviram-se naquele público que, quando há duas semanas nos coliseus do Porto e de Lisboa ouviu "Já é uma sorte eu poder estagiar", aplaudiu de pé a voz de Ana Bacalhau. É a música da geração que não irá ter reformas, é a geração que vê constantemente a sua progressão tapada (a idade ainda é um posto), que não vê reconhecida as suas qualidades (quando elas existem), etc… Não arranja emprego porque não tem experiência, mas sem emprego também não a ganha… Por outro lado, a maior longevidade e vida activa das gerações anteriores faz atrasar a necessidade de renovação. É a música da minha geração, que quer construir e deixar algum legado para as gerações futuras e que não consegue, porque em muitos casos nem uma oportunidade lhes é dada. Deixo a letra da música para que todos possam ler e reflectir sobre aquilo que são os sentimentos da generalidade dos jovens dos 25 aos 35 anos em Portugal.
Parva que Sou, "Deolinda" – letra
Sou da geração sem remuneração
E não me incomoda esta condição
Que parva que eu sou
Porque isto está mal e vai continuar
Já é uma sorte eu poder estagiar
Que parva que eu sou
E fico a pensar
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar
Sou da geração "casinha dos pais"
Se já tenho tudo, pra quê querer mais?
Que parva que eu sou
Filhos, maridos, estou sempre a adiar
E ainda me falta o carro pagar
Que parva que eu sou
E fico a pensar
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar
Sou da geração "vou queixar-me pra quê?"
Há alguém bem pior do que eu na TV
Que parva que eu sou
Sou da geração "eu já não posso mais!"
Que esta situação dura há tempo demais
E parva não sou
E fico a pensar,
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar.
O autor deste artigo não o escreveu ao abrigo do novo Acordo Ortográfico