João de Deus é referenciado como o maior poeta da sua geração. Foi apreciado pela sua simplicidade. É o cantor do amor. Da bondade. Da doçura. Da ternura. De temas eternos. Agasalhou no coração de oiro a alma poética do povo. O ritmo dos versos tem a vivacidade lírica e a harmonia do cantar greco-romano de um rapsodo errante. Os temas dos seus versos afastam-se do ambiente cultural da sua geração. Deixa para outros poetas os livros de lombada encadernada. E o tempero filosófico reinante na época. O poeta nunca precisou de instalar a banca na praça das letras. Tinha sempre a cancela aberta no scriptorium para os amigos arrumarem os poemas que ia declamando.

Ultrapassada a passagem por Coimbra, qual Guerra de Tróia, como ele dizia, a vida literária tem vários estágios. Já foram analisados pelos homens do saber e pelos críticos de espírito culto. Deixou-nos ainda a Cartilha Materna, o chamado apostolado pedagógico. A sua vida vem nos manuais. Podemos verificar, conforme a habilidade do manuseador da pena, a cópia de cópia. A vida da sua juventude é praticamente ignorada pelos analistas. O mesmo acontece com a época em que passou por São Bartolomeu de Messines, depois de ter deixado Coimbra e Beja.

Hoje apresentamos algumas informações acerca da sua juventude, antes do poeta ir estudar para Coimbra. Frequentou os seminários ”ad hoc” na sua terra natal e em São Brás de Alportel (o de Faro encontrava-se encerrado devido à situação política reinante). Foi clérigo minorista da Diocese do Algarve. É esta a nova versão da sua vida que hoje se apresenta.

Já em 1978, por intermédio do P.e Leonel Diogo Ramos (1911-1996), arquivista do Arquivo Histórico da Diocese do Algarve, tive conhecimento de que o poeta João de Deus andou a “estudar para padre”. Depois de intensas buscas não se encontrou qualquer referência nos índices e inventários do Arquivo da Diocese referente a João de Deus. Analisados milhares de papéis e processos, veio-se a descobrir a documentação referente a João de Deus. Afinal, encontrava-se dentro de um processo “de genere” referente a outra pessoa.

1.Encerramento do Seminário de São José

Quando as casas de formação eclesiástica foram obrigadas a encerrar, em 25 de junho de 1758, a Diocese do Algarve teve dificuldades na formação do clero. Não estava preparada para formar o clero de que necessitava. Foi necessário criar o Seminário de São José, na cidade de Faro. D. Francisco Gomes de Avelar inaugurou o novo Seminário no dia 8 de janeiro de 1797. Porém, no século XIX, as convulsões políticas desorganizaram a ação da Diocese e a atualização do clero raramente se fez, algum clero perdeu a chama missionária e uma parte enveredou pela ação política. Nesta época conturbada para a Igreja (1934-1851), o Seminário de São José não funcionou.

2. Seminários de recurso

Encerrado o Seminário de São José, em Faro, a Diocese organizou-se e alguns párocos tinham no seu presbitério alunos que se preparavam para o sacerdócio. Professores do clero religioso e secular foram aproveitados e continuaram a dar as aulas a pequenos grupos de candidatos ao sacerdócio. Foi uma tradição algarvia alguns párocos, para além do Seminário de São José, darem aulas a estudantes nas suas freguesias. Um exemplo recente é o caso de D. Marcelino Franco que estou francês, durante as férias, com o prior de Alcoutim.

Vários sacerdotes tinham no presbitério um centro de estudos eclesiásticos: P.e Vicente Maior do Rosário, de Tavira, professor de teologia; Padre Mestre Joaquim Veríssimo dos Reis e Almeida, cura em S. Bartolomeu de Messines e preparou o poeta João de Deus para as Ordens Menores (Hostiário, Leitor, Exorcista e Acólito); Cónego Joaquim Manuel Rasquinho, de Faro; Cónego João de Paiva Correia, de Moncarapacho e Cónego António Caetano da Costa Inglês, de Lagos e mais tarde em São Brás de Alportel

O Cónego Costa Inglês, prior na Colegiada de Lagos, foi preso, enclausurado no convento de N.ª S.ª da Glória, e conduzido mais tarde para Lisboa. Foi acusado pelos vereadores da câmara, procurador «e mais pessoas de nobreza e povo» (mais de 60 pessoas assinaram o «crime de rebelião») de não ter assinado o termo de aclamação ao «Senhor Dom Miguel Primeiro nosso amado, e legitimo soberano». Segundo os miguelistas da cidade, «tanto no púlpito, como no particular foi sempre hum exaltadíssimo constitucional, ensinando doutrinas contrarias á são moral, ao altar, e ao trono, a ponto de proferir blasfémias». O elenco da chocarrice acusatória é vasto e trivial e opõe-se frontalmente a uma declaração abonatória, a favor do prior de Lagos, assinada pelos sacerdotes da cidade. A acusação até pode servir de “modelo” para situações idênticas que surgiram nestes conturbados tempos1 .

Tinha um seminário (1835) e, quando foi nomeado prior de São Brás de Alportel (3.05.1849), trouxe o “seu Seminário”, que funcionou até à abertura oficial do Seminário de São José de Faro (1856). Como nesta freguesia havia o Palácio Episcopal para veraneio dos bispos, o edifício foi aproveitado para Seminário. Aqui se preparavam e faziam os exames os candidatos ao sacerdócio.

O Almanach de S. Braz d’Alportel, para 1893, p. 20, refere-se a este seminário de recurso:

Trancadas as portas do seminario do Algarve em consequencia das luctas continuamente feridas entre liberaes e legitimistas começou a resentir-se da falta de clero o bom serviço da diocese a ponto que vinham padres do Minho preencher as lacunas; esta afluencia determinou o benemerito Antonio Caetano a abrir em Lagos um curso, com o fim d’utilisar as capacidades indigenas. Transferido para S. Braz, trouxe alguns discipulos e continuou a missão que se impozera. Em breve se propagou por todo o Algarve e subiu ao Alentejo a noticia d’este curso. S. Braz tornou-se em pouco n’uma Coimbra em miniatura.

Durou este curso ate 1854 em que se abriu o seminario de Faro e para cujo lente de dogma foi convidado o reverendo sacerdote a que temos alludido.

Na aldeia são-brasense, o Lente António Caetano da Costa Inglês dava as cadeiras de Instituições Canónicas, de Teologia Dogmática e de Teologia Moral. E «no dizer do Governo era muitíssimo frequentado e com excelentes resultados2 ».
No 1.º ano do Curso de Teologia, os candidatos ao sacerdócio tinham aulas de História Eclesiástica e de Direito Canónico. No 2.º ano as aulas de Direito Canónico, Teologia Moral e Teologia Dogmática. No 3.º ano Teologia Moral, Teologia Moral e Exegese. Além disso, havia ainda aulas de Liturgia e Canto Coral. O regulamento do Seminário era, basicamente, o mesmo elaborado no tempo de D. Avelar3 . As outras disciplinas eram ensinadas pelos padres mestres nas instalações paroquiais: Grego, Hebraico, Hermenêutica, Eloquência Sagrada, Francês, Inglês, Catequese, Declamação, Trabalhos Oficinais, Ciências da Natureza, Matemática, Física e Química, Desenho, Arte Sacra4 . Devido às circunstâncias políticas, o Curso de Teológico ficou reduzido a dois anos.

As instalações do Palácio Episcopal tiveram de ser apetrechadas convenientemente para albergar os alunos e alguns ficaram instalados em casas da Paróquia. Para além dos residentes, havia alunos que passavam na aldeia são-brasense uma temporada, onde prestavam provas, e depois regressavam às suas paróquias e eram orientados pelos mestres e párocos. Outros vinham fazer apenas os exames e estudavam com os mestres habilitados para tal, conforme o ano de estudos.

Pelo Rol de Confessados ficamos a saber quantos seminaristas residiam em São Brás de Alportel, na Quaresma dos anos de 1850 – 30, de 1851 – 42, de 1853 – 33 e de 1854 – 21. Entre eles encontra-se referenciado o seu irmão João Gregório Ramos (1850-1851). Os outros seminaristas ausentes estão arrolados nas paróquias de origem. Os subdiáconos e diáconos viviam em várias paróquias, estudavam com o pároco e vinham a São Brás de Alportel assistir a algumas aulas e fazer os exames.

Afonso da Cunha Duarte

1 AHDA Clero, processo 28
2 Ribeiro, 1892, tom. VIII, p. 296
3 Seminario Episcopal da Diocese do Algarve, 1892
4 Duarte, Memórias I, p. 299-302