Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

O clero da Diocese do Algarve teve ontem acesso a “chaves de leitura” para interpretação do livro do Apocalipse, o último da Bíblia, da autoria de São João, de cariz fortemente simbólico.

Na jornada de formação, que a Diocese do Algarve promoveu no Seminário de São José, em Faro, para o seu bispo, padres e diáconos, num total de cerca de 40 participantes, o formador evidenciou que aquele livro da Bíblia pretende mostrar que a história está na mão de Deus que terá a última palavra sobre o mal. “O Apocalipse parte desta imagem: de Alguém que está sentado no trono, ou seja, de Alguém que está a reger a História”, afirmou ao Folha do Domingo o padre Mário, especialista no estudo de São João.

O sacerdote – que já tinha apresentado a sua reflexão sobre este tema na Jornada Bíblica da diocese algarvia de 2014, repetida em fevereiro de 2015 para os membros das paróquias que constituem a vigararia de Faro – explicou que procurou dar agora ao clero algarvio “a possibilidade de penetrar na beleza deste livro” que considerou “de uma riqueza simbólica imensa”. “É, sobretudo, um livro que fala através de imagens, de símbolos, precisamente porque quando nós queremos falar de Deus a nossa linguagem descritiva é sempre muito limitada”, observou.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

O formador disse ser, por isso, “muito natural que a Bíblia”, escrita numa “mentalidade oriental”, “muito simbólica e muito evocativa”, “muito diferente” do Ocidente, “procure símbolos para que, através deles, possa levar a inteligência humana um bocadinho mais longe do que aquilo que a linguagem descritiva permite”. “Quando eu descrevo qualquer coisa, a linguagem é muito informativa. Quando eu quero expressar sentimentos essa linguagem é-me insuficiente. Preciso da poesia, preciso dos símbolos, para poder ir mais longe. Ora, a bíblia, que nos fala sobretudo dos mistérios e de Deus, socorre-se muito da linguagem simbólica”, afirmou o padre Mário de Sousa, sustentando que “se isto é verdade para todos os livros da Bíblia, de um modo particular é verdade na literatura apocalíptica porque o livro do Apocalipse não é qualquer coisa que aparece fora de um contexto”.

O biblista recordou que “a literatura apocalíptica faz parte da literatura bíblica e da literatura intertestamentária”, ou seja, “de livros judaicos dos séculos II e I a.C. e mesmo d.C., que não estão na Bíblia, mas que têm muito esta característica de uma linguagem apocalíptica que é uma linguagem própria”. “Se não estivermos dentro do contexto e dos símbolos e nos aproximarmos da linguagem com os nossos critérios do Ocidente, muito iluministas, muito racionalistas, vamos projetar na Bíblia aquilo que nós pensamos e não aquilo que o simbolismo diz”, alertou.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Lembrando que o simbolismo naquela obra literária se desdobra em simbolismo cósmico (cosmos), teriomórfico (animais), aritmético (números), cromático (cores) e antropológico (mundo dos homens), o sacerdote explicou, a título de exemplo, que no caso do simbolismo aritmético, “os números não são apenas quantitativos”, mas “têm qualidade”. “O 7 implica perfeição; o 3 implica totalidade; o 3,5 [três e meio], metade de 7, implica parcialidade; o 6, que não chega a 7, implica imperfeição e, por isso, o 666 três vezes imperfeito, completamente imperfeito”, exemplificou.

O formador congratulou-se com este tema pedido pelo Conselho Presbiteral da Diocese do Algarve para a formação deste ano. Lembrando que o assunto é apenas abordado numa disciplina semestral no curso de Teologia, disse ser “impossível dedicar-se tempo de qualidade ao livro do Apocalipse”, advertindo que a falta das “chaves de leitura” para interpretação do texto levam a que o livro seja “relegado ou então tomado e instrumentalizado” por “pré-conceitos”.