
O frei Fernando Ventura voltou ao Algarve, de 17 a 21 do mês passado, para realizar um curso bíblico promovido conjuntamente pela Fraternidade de Tavira da Ordem Franciscana Secular e pelas paróquias de Tavira.

Na iniciativa, participada por cerca de uma centena de pessoas maioritariamente das paróquias que constituem a vigararia de Tavira e que teve lugar na igreja de São Francisco daquela cidade, o franciscano capuchinho procurou apresentar “a Bíblia como ponto de partida para uma nova humanidade” assente no “desafio e proposta de relação” que disse ser o Cristianismo. “O Cristianismo não é uma religião. É um desafio e uma proposta de relação no respeito pelas diferenças na consciência absoluta de que Deus não cabe dentro de nós”, afirmou na catequese inicial, lembrando que “o desafio de Jesus de Nazaré não é o de construir uma religião no sentido de um conjunto de normas e leis”, cumpridas as quais se vê assegurada a salvação.

Nesse sentido, destacou que “o Cristianismo é a sequência lógica do Judaísmo” (que também não considera como uma religião) e lamentou que se continue a celebrar a conversão de São Paulo. “Paulo nunca se converteu. Paulo nasceu judeu, viveu judeu e morreu judeu. Como judeu espera o Messias e quando O encontra, segue-O. Não há conversão, há continuidade”, defendeu, acrescentando que “entre Pedro e Paulo se algum deles se teve de converter foi Pedro”.

O teólogo lembrou, a propósito, a “universalidade de Deus que não cabe em nenhuma teologia, filosofia ou religião porque não cabe dentro de nenhum ser humano” e “que, por isso, se abre ao desafio da horizontalidade de relações montadas, não na tolerância que olha o outro de cima para baixo, mas no respeito de quem tem consciência de que Deus se relaciona pessoa-a-pessoa, comunidade-a-comunidade”. “Deus relaciona-se connosco no desafio da construção do nós”, sustentou, lembrando que “Deus não tem religião”, pois “casou com a humanidade inteira”. “Não há excluídos da aliança”, reforçou na primeira catequese, durante a qual defendeu, a partir de alguns acontecimentos relatados na Bíblia, que a religião pode estorvar a fé.

Neste contexto desafiou à “reeducação do olhar”. “É o desafio de encontrar no outro um tu de relação, porque só diante de um tu é que o meu eu se descobre”, explicou, apontando à “construção de um mundo diferente” do atual, começando pelas comunidades cristãs.
O sacerdote defendeu assim que “este é o tempo de passar definitivamente da religião à fé, das religiões que matam à fé que liberta, que é capaz de fazer revolução” e considerou que os tempos de hoje estão “urgentemente necessitados de profetas”. “Este é o tempo de homens e mulheres de fé”, especificou, acrescentando existir uma missão comum a todas as pessoas. “Todos temos uma única missão neste mundo, independentemente da opção política, religiosa, sexual ou económica: procurar ser gente com gente para que, cada vez mais, gente seja gente e nunca ninguém deixe de ser pessoa. O resto pode ter ou não sentido na medida em que te ajude a ti, a mim e a cada um de nós a celebrar a vida para depois podermos celebrar a fé”, afirmou.

Em Tavira, o frei Fernando Ventura, lembrando que a Bíblia “é uma biblioteca”, trilhou o trajeto do livro do Génesis ao do Apocalipse, realçando que “o fio condutor que pode dar sentido a tudo é a Aliança”, “palavra riquíssima” que em hebraico se escreve ‘ברית’ (Barite) e que lamentou ter tido uma “tradução triste” em português para ‘Testamento’. “O Novo Testamento não se entende sem o Antigo Testamento e o Antigo Testamento também não se compreende na sua plenitude sem o Novo Testamento”, esclareceu, acrescentando que “o livro do Apocalipse, o último da Bíblia, é o que abre à esperança, que abre para o futuro, para a certeza da presença de Deus”, sustentou, realçando que “a última palavra será sempre de Deus”.
Como “momento zero da Bíblia”, ou seja, o “momento zero” da humanidade, como “gente desafiada a ser relação com os outros”, o frei Fernando Ventura considerou o episódio da sarça ardente com Moisés no monte Horeb. “O momento zero de toda a revelação está aqui”, vincou.

O curso bíblico terminou com o texto que considerou a “chave de leitura da Bíblia”: as Bem-Aventuranças. “É o texto mais revolucionário da história da humanidade e ao mesmo tempo o texto mais perigoso, com o qual se pode fazer terrorismo religioso”, advertiu. “A chave [de interpretação] está no estilo de pobreza que Deus quer e a pureza a que somos chamados. Não tem a ver com a pobreza do não ter. Tem a ver com a pobreza da partilha. Para mim só faz sentido ler a Bíblia nesta chave de leitura do desafio da relação, sem que a minha liberdade seja limitada pela liberdade do outro”, explicou.
Ao longo daqueles dias de formação, o biblista alertou ainda para “o perigo de se tirar qualquer texto do contexto”. “Cada texto nasceu escrito por um autor, num tempo concreto, numa história concreta, num sofrimento ou numa alegria concretas, para um destinatário concreto. É tudo isto que importa ter em conta e o importante é sempre, quando se ler um texto, perder tempo a ler as notas, a introdução do livro. Estamos a falar de um livro que foi escrito numa língua que não é a nossa. O Antigo Testamento foi escrito em hebraico e o Novo Testamento quase todo exclusivamente em grego. São conceitos que nos vão ultrapassando e formas de dizer que nós hoje já não usamos”, observou, aconselhando a situar a linguagem e os estilos literários.
“Esta gente produz ao longo de séculos esta aventura de se fazer palavra que acolhe a aventura de Deus que se faz palavra e a Bíblia é a palavra de Deus, mas é a palavra de Deus e escrita por homens e mulheres à maneira humana de escrever, cada e com o seu jeito, estilo e ocasião”, completou.