O papa Francisco fez história ao convocar para o Vaticano presidentes de conferências episcopais, religiosos, vítimas de abusos sexuais, responsáveis da Cúria Romana e jornalistas para debater as falhas da Igreja Católica na promoção de menores. 190 pessoas reuniram-se para quatro dias de trabalho, de 21 a 24 de fevereiro, com um objetivo: apresentar ao mundo medidas concretas.

Essa intenção foi assumida logo no discurso inaugural e reafirmada ao longo de todo a cimeira inédita. Cada dia de trabalho foi dedicado a um tema, a começar pela responsabilidade. Conferências e trabalhos de grupos acompanhados por testemunhos de vítimas. Uma voz ouvida dentro e fora do Vaticano, em várias manifestações de protesto. De entre os testemunhos ouvidos no encontro, o depoimento de mulher italiana, sobre abusos sofridos por um padre, com 11 anos de idade, sacudiu auditório.

O segundo dia de trabalhos falou da exigência de prestação de contas, com a intervenção de dois cardeais e da primeira oradora do encontro. Mas coube ao cardeal Sean O’Malley, arcebispo de Boston e presidente da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, criada pelo papa, assumir um dos temas quentes da cimeira, defendendo que os bispos têm a “obrigação moral” de comunicar casos de abusos às autoridades civis.

Foto © EPA/Vincenzo Pinto

Mas o propósito de apresentar medidas concretas foi consolidado hoje, no dia do seu encerramento, com o papa a dizer que “chegou a hora” de a Igreja e a sociedade unirem forças para “erradicar” os abusos sobre menores, que considerou uma “brutalidade” e “monstruosidade”.

“Chegou a hora de encontrar o justo equilíbrio de todos os valores em jogo e dar diretrizes uniformes para a Igreja, evitando os dois extremos: nem judicialismo, provocado pelo sentimento de culpa face aos erros passados e pela pressão do mundo mediático, nem autodefesa que não enfrenta as causas e as consequências destes graves delitos”, declarou hoje no discurso conclusivo.

“O objetivo da Igreja será ouvir, tutelar, proteger e tratar os menores abusados, explorados e esquecidos, onde quer que estejam”, apontou.

No final da missa a que presidiu na sala régia do Palácio Apostólico, Francisco deixou um “sentido apelo à luta total contra os abusos de menores”, tanto no campo sexual como noutros campos, por parte de todas as autoridades e dos indivíduos, falando em “crimes abomináveis que devem ser eliminados da face da terra”.

A intervenção destacou a intenção de não tolerar “um único caso de abuso na Igreja” e admitiu que existe uma “ira justificada” das pessoas perante estas situações.

Durante o encontro, algumas vozes manifestaram desconforto por só se falar em abusos sexuais e, no seu discurso final, o papa parece ter dado eco a estas preocupações. Não para relativizar a gravidade dos crimes, mas sublinhar a sua mensagem de líder global: os abusos sexuais chegam a todo o mundo, a começar pelas próprias famílias, e nenhuma diferença cultural os pode justificar.

No discurso deixou um agradecimento a todos os sacerdotes e consagrados que se sentem “desonrados e desacreditados” pelos vergonhosos comportamentos dalguns dos seus confrades e desafiou todos a “transformar este mal em oportunidade de purificação”. “Agradeço, em nome de toda a Igreja, à grande maioria dos sacerdotes que não só permanecem fiéis ao seu celibato, mas se gastam num ministério que hoje se tornou ainda mais difícil pelos escândalos de poucos (mas sempre demasiados) dos seus irmãos”, afirmou.

Foto © EPA/Giuseppe Lami

O papa Francisco apresentou um ‘roteiro’, em oito passos. “Nenhum abuso deve jamais ser encoberto (como era habitual no passado) e subestimado, pois a cobertura dos abusos favorece a propagação do mal e eleva o nível do escândalo”, referiu, no discurso conclusivo do evento.

Em primeiro lugar, sublinhou Francisco, está a “defesa das crianças”, mudando a atitude “defensivo-reativa de salvaguardar a Instituição”.

O pontífice afirmou que é necessário colaborar com a justiça e promover o “caminho da purificação na Igreja Católica, sem “alibis”.

O elenco de prioridades destaca a importância de ser exigente na “seleção e formação dos candidatos ao sacerdócio”, englobando a “virtude da castidade”.

O papa apelou à unidade dos bispos na aplicação de protocolos com “valor de normas e não de orientações”, com preocupação na prevenção dos abusos e no acompanhamento das vítimas, “oferecendo-lhes todo o apoio necessário”.

O discurso final do papa apontou ainda os desafios levantados pelo mundo digital, com “novas formas de abuso sexual e de abusos de todo o género”, bem como um “acesso descontrolado à pornografia”.

O papa Francisco determinou que o crime de aquisição, detenção ou divulgação de imagens pornográficas com menores de idade, inserido em 2010 entre os “delitos mais graves” para os membros do clero, no Direito Canónico, deixe de fazer referência a “menores de 14 anos”, para “insistir na gravidade destes factos”.

O Vaticano vai enviar a todas as Conferências Episcopais um “vade-mécum”, documento orientador que recolhe, entre outros, os resultados da discussão levada a cabo pelos participantes no encontro.

O anúncio foi feito hoje pelo moderador do encontro sobre proteção de menores, padre Federico Lombardi, em conferência de imprensa.

O documento foi preparado pela Congregação para a Doutrina da Fé (Santa Sé), para ajudar os bispos do mundo “a compreender os seus deveres e tarefas” em casos de abusos sexuais.

O padre Federico Lombardi afirmou que este é um texto breve, direto e preciso, “do ponto de vista jurídico e pastoral”.

Outra medida saída da cimeira dedicada aos abusos de menores, com presidentes de conferências episcopais e superiores de institutos religiosos, é a criação de “task forces” para ajudar dioceses que tenham falta de recursos.

“Num espírito de comunhão com a Igreja universal, o papa manifestou a intenção de criar ‘task forces’ de pessoas competentes para ajudar conferências episcopais e dioceses com dificuldades em enfrentar problemas e produzir iniciativas para a proteção de menores”, assinalou o padre Federico Lombardi.

Outra iniciativa anunciada é um novo Motu Proprio (decreto pontifício) do papa Francisco, que será divulgado “em breve”, sobre a proteção de menores e pessoas vulneráveis, para “reforçar a prevenção e o combate contra os abusos” na Cúria Romana e o Estado da Cidade do Vaticano.

Em aberto ficam questões nas quais se esperavam novas orientações, como a responsabilização de bispos que encubram casos, a obrigatoriedade de denúncia às autoridades civis, a penalização para membros do clero ou religiosos que tenham sido condenados por abusos. As intenções foram declaradas com clareza, mas com o disse o arcebispo australiano Mark Coleridge, é preciso passar aos atos: “Tudo isso vai levar tempo, mas não temos para sempre e não podemos falhar”.

Texto escrito a partir da reportagem em Roma no Encontro sobre Proteção de Menores na Igreja realizada em parceria para a Agência Ecclesia, Família Cristã, Flor de Lis, Rádio Renascença, SIC e Voz da Verdade.