Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

“Não podemos acostumar-nos ao cuidado básico do saquinho da comida. Para além de pouco é básico e não extingue, nem sequer documenta a caridade cristã que nos faz ajoelhar diante do pobre e reconhecer nele o próprio Cristo”, advertiu o padre Pedro Manuel, primeiro orador das XVIII Jornadas de Ação Sociocaritativa da Diocese do Algarve, que no passado sábado refletiram sobre o tema “Pobre, caminho de Missão”.

O sacerdote falava na iniciativa que reuniu 96 participantes de todo o Algarve no Centro Pastoral e Social da Diocese do Algarve em Ferragudo, onde alertou que “há muitos tipos de pobreza, mas a mais grave é aquela que continua a confundir a liberdade de dormir na rua com a miséria de não ter onde dormir ou o que comer”.

“O pobre é caminho de missão e não um «bibelô» a que nos acostumamos a ajudar fazendo a nossa caridadezinha – sim, caridadezinha! – que pode descansar a consciência, mas que não dignifica nem levanta ninguém”, alertou, garantindo não querer “desvalorizar o que quer que seja do serviço de quem a faz”, mas antes “evidenciar que a caridade cristã se confunde com uma opção de amor”.

“A dificuldade está em fazer desaparecer a pobreza da beira da nossa porta ou da porta das nossas igrejas, que está muito para além do saco de comida que podemos distribuir uma ou duas vezes por mês”, prosseguiu, lembrando que o “caminho de missão não é apenas fora”. “É fácil quando falamos de missão, pensar no fora, no longe, até porque esses é fácil amar. Matar a pobreza desses é relativamente simples: a gente dá alguma coisa no peditório e a nossa consciência fica tranquila”.

Mas o palestrante alertou também que o apoio social aos de perto “pode estar exercido” sem que signifique que “esteja a proximidade humana”. “Podemos olhar para um utente ou para um «cliente», como lhe chama a segurança social, como um «bibelô», como um número ou como o «meu» pobre”, constatou, alertando para a necessidade de ajudar a pessoa a “levantar-se” para que não seja “indefinidamente pobre”. “Há pessoas que não se levantarão nunca, e é bom que tenhamos essa consciência, mas há outras que se levantarão a partir de alguma insistência e de algum estímulo”, acrescentou.

Por outro lado, o padre Pedro Manuel pôs em causa até a classificação social que usa o termo «pobre». “Utilizar indiscriminadamente a palavra «pobre» faz-nos, quase de forma utilitária, materializar uma situação, quando realmente nós estamos a falar é de uma pessoa, uma pessoa que, segundo os nossos critérios e os da sociedade, não tem o básico para viver”, constatou.

O sacerdote alertou assim que a ajuda aos pobres não é “beneficência”. “Quando damos aos pobres as coisas indispensáveis não praticamos com eles grande generosidade pessoal, mas devolvemos-lhes o que é deles, cumprimos um dever da justiça e não um ato de caridade”, afirmou, sublinhando que “a injustiça é a raiz perversa da pobreza”.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

“A pobreza cristã é dar do que é meu ao pobre, inclusive do que é necessário e não o supérfluo porque sei que ele me enriquece. E porque sou enriquecido pelo pobre? Porque Jesus disse que Ele mesmo está no pobre”, prosseguiu, evidenciando que, por isso, “a pobreza cristã não é uma ideologia”. “Nos pobres e nos últimos vemos o rosto de Cristo, amando e ajudando os pobres. E amando e ajudando os pobres, amamos e servimos Cristo”, sustentou, acrescentando que esse “compromisso” aponta para “que cessem no mundo as violações da dignidade humana, as discriminações e os abusos que, em muitos casos, estão na origem da miséria” e ser “necessário que as consciências se convertam à justiça, à igualdade, à sobriedade e à partilha”.

Neste sentido, exortou à “desinstalação real” de cada um no presente ano missionário (outubro de 2018 a outubro de 2019) – instituído pela Igreja portuguesa como resposta à decisão do papa de proclamação de um mês missionário em outubro deste ano –, “indo a outras paróquias, a outros serviços, a outras comunidades, dioceses e países”, para oferecer o “pouco que sempre será muito para quem nada tem”.

“Discursos bonitos com alguma facilidade de palavra, todos nós somos capazes de fazer. Passar do discurso bonito ao discurso mais bonito e eloquente que passa pela ação e não pela palavra, nem todos são capazes porque muitos estão demasiado centrados em si mesmos”, lamentou, acrescentando que para “chegar ao outro”, sobretudo ao que não tem o que retribuir, implica sair de si.

Por outro lado, o padre Pedro Manuel criticou a institucionalização do apoio social da Igreja. “A forma institucionalizada como, infelizmente, somos obrigados a fazer caridade, às vezes rouba-nos o essencial dessa mesma caridade que é a possibilidade de estarmos uns com os outros e de partilharmos a vida uns com os outros”, lamentou.

O sacerdote alertou ainda que “as riquezas realizam a sua função de serviço ao homem quando destinadas a produzir benefícios para os outros e para a sociedade”. “Se no trabalho apostólico são necessárias estruturas ou organizações que pareçam sinal de riqueza, que sejam bem usadas, mas com atitude de desapego”, pediu, alertando que “o mal está no apego desmedido às riquezas no desejo de açambarcá-las”.

Neste sentido, lembrou que “a Doutrina Social da Igreja, em consideração ao privilégio conferido pelo evangelho aos pobres, reafirma repetidas vezes que os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos para poder colocar com mais liberalidade os seus bens ao serviço dos outros e que uma afirmação excessiva de igualdade pode dar azo à individualização em que cada qual reivindica os seus direitos sem querer ser responsável pelo bem comum”. “Não estamos muito longe disto na nossa sociedade contemporânea”, alertou.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

O orador alertou ainda para um novo tipo de pobreza. “Há uma pobreza que vai ser a pobreza das relações sociais. Pode até haver trabalho, mas haverá muitas mais baixas psicológicas porque as pessoas não estão preparadas para falar olhos nos olhos com ninguém. Este tipo de pobreza aumentará porque é a pobreza da esperança”, afirmou, alertando para as “pobrezas que as doenças psicológicas” trarão ao mundo atual.

A terminar, considerou que “a Igreja terá um dia de dar contas no céu acerca da forma como se preocupou com a sua aparência, enquanto outros morriam à fome; acerca do modo como se revestiu de trapos, enquanto outros morriam de frio; acerca do modo como se encheu e fez encher de títulos, enquanto outros não iam à escola”.