Lídia Jorge defendeu na passada quarta-feira que religião e literatura são “dois campos que andam associados”, pois “têm paredes meias muito finas” com “caminhos paralelos, tangentes, secantes”.
A escritora algarvia foi a convidada da última edição da iniciativa ‘Quartas com Cristo’, promovida pela Capelania da Universidade do Algarve (UAlg), sobre o tema “O Fascínio da Palavra – Religião e Literatura”, e que mais uma vez se realizou online com transmissão em direto na página de Facebook daquele organismo da academia.
Lídia Jorge considerou que “a religião alberga aqueles que acreditam que conhecem um pouco da totalidade, aqueles que acreditam que existe Deus e que conhecem um pouco do seu rosto”, “enquanto que a literatura parte numa outra direção: a daqueles que também querem uma totalidade, mas à partida dizem: «eu não conheço Deus, eu não sei nomeá-l’O».
A oradora disse ser nesse ponto que uns e outros “se separam porque a religião disciplina o espírito e aquieta, dá uma espécie de consolo porque oferece uma gramática coesa”, “enquanto que na literatura há uma busca selvagem que é dolorosa e que nunca tem um fim perfeitamente acabado”. “É como se na religião tivesse havido uma revelação, enquanto que na literatura estamos à espera que a revelação ainda aconteça”, completou.
A escritora defendeu ainda que o aspeto comum entre as pessoas religiosas e as da literatura é a “crença no milagre”. “Os religiosos pensam que o milagre tem uma paternidade que é a divindade de Deus. Os escritores e os poetas cristãos também têm esse lado que os ampara, mas os outros estão à espera de um milagre. A literatura espera um milagre, uma revelação. Toda a arte canta à espera que exista o milagre do sentido da vida”, sustentou, acrescentando que “a literatura é feita com o mais puro da vida humana e com o mais denso do corpo humano que é o espírito”.
Lídia Jorge, que disse ter percebido na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa que “homens cultos podiam ser religiosos”, constatou que muitos cristãos “olham para a Bíblia como uma espécie de livro totalitário”. “Mesmo que seja um livro que nós consideramos sagrado, precisa de ser amparado pelos livros profanos”, defendeu, lembrando, por exemplo, que a literatura ajuda na resposta ao atual contexto de pandemia. “Ganhámos pessoas que acham que a literatura tem respostas para aquilo que está a acontecer. Há imensos livros que estão falando da nossa humanidade, da fragilidade humana”, sustentou no encontro que ficou marcado por uma homenagem aos alunos da UAlg falecidos naquele dia.
A escritora antecipou, por isso, que deseja escrever sobre o que se está a passar. “Eu quero escrever sobre isto e não sei como. Ainda estou a colher elementos, mas ainda não tive paz para isso porque o mundo está sendo demasiado violento e demasiado chamativo para eu encontrar o campo para a ficção”, afirmou, acrescentando que o que mais a tem sensibilizado “é imaginar as pessoas que estão em casa, que perderam o trabalho e que não têm o que comer”.
A escritora aludiu à complementaridade entre ciência, tecnologia e literatura. “Toda a ciência e toda a tecnologia são o triunfo do homem sobre o entendimento da matéria, mas deixa de parte aquilo que é o entendimento dos homens, a relação dos homens uns com os outros é da pessoa consigo própria”, advertiu, defendendo uma ponte entre as ciências e a literatura e lembrando que “os grandes cientistas são leitores”.
Nesse sentido, exortou ao que disse ser o regresso das humanidades ao mundo académico. “O mundo de hoje, desde há três meses, está a dizer-nos que é preciso voltarmos às humanidades, que as universidades têm, outra vez, de apostar nas humanidades”, afirmou, considerando que “os quadros superiores não podem prescindir do mundo literário”.