O essencial. É esta a característica fundamental da narrativa do Evangelista S. Marcos, segundo os biblistas, entre os quais o Rev. Pe. Mário de Sousa, clérigo algarvio. Marcos, que neste ano litúrgico acompanhamos, centra-se, usando um estilo marcado pela vivacidade e a singeleza de uma narração popular, mas muito objetiva e clara, em quem era Jesus Cristo. Ou seja, no essencial.
Na verdade, o evangelista percorre os episódios mais importantes da vida pública do Messias, com o olhar perspicaz de quem procura que, o cidadão que nunca o viu (nem nunca o fará, pois Cristo já havia sido morto, ressuscitado e subido aos Céus), descubra a força da sua palavra e a intensidade das suas ações. Busca que se entenda a sua generosidade e capacidade de sofrimento com os demais, a sua vontade de estar com eles.
Os detalhes são fantásticos: ao narrar a história do paralítico (Mc 2, 1-12), descreve detalhadamente como se amontoava a multidão, como fizeram para transportar o homem através do telhado da casa onde estava Jesus. Quase podemos, se fecharmos os olhos, sentir os sons e os cheiros das pessoas que se acotovelavam para O ver. De novo, quando conta a história da mulher que «havia doze anos vinha sofrendo de hemorragia» e que «padecera muito sob o cuidado de vários médicos e gastara tudo o que tinha, mas, em vez de melhorar, piorava» (Mc5:25,26), os detalhes são vívidos. No meio do aperto dos corpos ela tenta e consegue tocar no Mestre, acreditando que isso era suficiente para se salvar. E Ele, por sua vez, sente uma força que sai do seu corpo e pára. Procura no meio da multidão a razão de ser dessa sensação. Ela «aproximou-se, prostrou-se aos seus pés e, tremendo de medo, contou-lhe toda a verdade». E, olhando para as palavras seguintes, quase podemos sentir-nos ao lado de Jesus e vê-Lo sorrir, de coração feliz pela fé daquela mulher. Se naquela altura houvesse câmaras de TV, ou melhor ainda, telemóveis, estes seriam momentos virais nas redes sociais. Tudo e todos falariam daquele homem que fazia milagres e que os fazia perto dos mais pobres.
Ou no Getsémani (Mc 14, 33-42), quando Cristo, sabendo o que se aproximava, «começou a ficar aflito e angustiado» e disse aos apóstolos que o acompanharam: «A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal». Tudo se desenrola como se víssemos uma cena de uma reportagem televisiva: os homens armados chegam, prendem Jesus, há uma agressão por parte de um discípulo, outro sai a correr, nu. O medo e as sombras tornam-se parte da cena e, mais uma vez, somos convidados a quase sermos personagens da mesma, a descobrir, no meio da confusão que se gera, o que faríamos, o que sentiríamos perante aquele que é o essencial: Jesus. Imagino os diretos a terminarem com a prisão e o desaparecimento de Jesus nos calabouços e os repórteres a competir para ter o melhor ângulo.
Marcos, este evangelista de quem tenho estado a falar, encontra Jesus com maior facilidade no meio dos que são pobres, dos que a sociedade rejeitara, aqueles de quem as crónicas oficiais do Império nunca falariam, porque eram absolutamente ninguém. Marcos é o “jornalista evangelista”. É aquele que revela o quotidiano, para que quem vive do lado mais fraco do poder, possa ter voz e ganhe importância junto de quem tem o poder maior, Deus, na pessoa do Seu Filho feito homem.
Há poucos dias, o Papa Francisco fez publicar a 55ª Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais. Pedia a todos os profissionais da comunicação que saíssem dos seus espaços de trabalho e fossem ver os acontecimentos. Não se limitassem a contar coisas que afinal não viram, recorrendo a fontes secundárias, sentados no conforto das redações, produzindo amiúde uma «informação pré-fabricada, “de palácio”, autorreferencial, que cada vez menos consegue intercetar a verdade das coisas e a vida concreta das pessoas, e já não é capaz de individuar os fenómenos sociais mais graves nemas energias positivas que se libertam da base da sociedade». É preciso, desafia o Santo Padre, «gastar a sola dos sapatos», partir em busca das histórias que verdadeiramente interessam. «Ir aonde mais ninguém vai: mover-se com desejo de ver», diz Francisco. Porque se «faltassem estas vozes» haveria «um empobrecimento para a nossa humanidade».
Imaginem que S. Marcos não tivesse narrado estes detalhes, por nunca ter sido capaz de sair e ver o que estava a acontecer? Nunca conheceríamos, de verdade e inteiramente, o rosto de Jesus Cristo, porque perderíamos por completo a dimensão tão importante do encontro com aqueles que, como diz Francisco, viviam nas periferias do seu tempo.
Precisamos dos jornalistas. Muito. É uma profissão nobre e exigente, sujeita a tantas dificuldades e pressões, mas que, quando exercida com verdade, com sincero e honesto profissionalismo, nos faz conhecer o mundo em que vivemos, nos ajuda a resolver problemas, a criar oportunidades. Não queremos o sensacionalismo e as notícias falsas; não queremos o que facilmente vende e apela ao nosso lado mais negro; não queremos o populismo ou, por oposição, o autoritarismo. Precisamos de jornalistas, mas também de cidadãos responsáveis. «Todos somos responsáveis pela comunicação que fazemos, pelas informações que damos, pelo controlo que podemos conjuntamente exercer sobre as notícias falsas, desmascarando-as», salienta o Santo Padre.
«Todos estamos chamados a ser testemunhas da verdade: a ir, ver e partilhar», diz Francisco. Eu secundo-o. E porque, ao contrário de muitos, acredito que o jornalismo, nomeadamente o algarvio, está bem servido de profissionais, agradeço a todos o seu trabalho e empenho e peço-lhes, caros jornalistas algarvios, que não cedam ao que é mais fácil, porque todos precisamos de mostrar o essencial.