Não passei a Semana Santa em Saragoça, mas fui acompanhando o que pôr lá se passava. Vi as muitas procissões tradicionais, que encheram as ruas, quer dos participantes e das confrarias, trajadas com os característicos capuzes, quer dos monumentais andores, levados num passo bailado. O silêncio era aqui e ali entrecortado por um canto tradicional, por uma voz que espontaneamente, do balcão de uma varanda dirigia uma prece especial à Virgem ou ao Senhor crucificado. Sempre em cenários onde os sons predominantes eram os das matracas, das caixas que rufavam e a luz privilegiada, a dos archotes e velas.

Terminada a Semana Santa, geram-se debates entre os clérigos sobre a validade destas manifestações, sobre a verdadeira fé de quem participa, sobre se as mesmas deveriam ser extintas. Acesas trocas de ideias, revelam uma intolerância significativa pelo facto de, estes eventos, serem manifestações culturais da religião e fatores de atratividade do território. Na verdade, elas são referências culturais da religião, que transcendem os limites do simples ato de devoção e adentram o âmbito da preservação da identidade e das tradições de uma comunidade. Em muitas sociedades, incluindo Portugal, essas práticas não são apenas manifestações de fé, mas, também, veículos essenciais para a transmissão de valores culturais, históricos e sociais, de geração em geração.

As procissões, em particular, representam momentos de comunhão e expressão pública da religiosidade de uma comunidade. Ao desfilarem pelas ruas, carregando imagens sacras, símbolos e estandartes, os participantes não apenas demonstram a sua devoção, mas também reforçam os laços de solidariedade e pertença à comunidade religiosa. Além disso, refletem a riqueza e diversidade do património religioso de uma região, incorporando elementos específicos da tradição local: música, trajos e rituais, passados de geração em geração, factos que nos levam a perceber, que podem ser um reflexo vivo da história e da identidade da comunidade – uma identidade cristã católica -, preservando e transmitindo conhecimentos ancestrais, de outra forma, provavelmente esquecidos.

Manter estas práticas religiosas enriquece, de modo bem visível, o tecido cultural da sociedade, contribuindo para a diversidade e vitalidade das manifestações culturais e para a o reforço dessa marca do catolicismo. Contribui, ainda, para um fortalecimento da necessidade de existência de um espírito de tolerância, que deve abranger o todo da sociedade e cada uma das religiões, cujos membros ela integra.

Não podemos esquecer que a religião, enquanto cultura, tece uma complexa teia de significados e práticas que moldam a identidade das gentes e influenciam profundamente a sua forma de ver e interagir com o mundo. Em Portugal, a história religiosa é intrinsecamente ligada à sua identidade nacional, marcada por séculos de influência católica, que tem permeado a sua cultura de formas diversas. Além disso, a religião influencia as práticas sociais e éticas dos portugueses, moldando as suas noções de moralidade, solidariedade e justiça, plasmando os valores com que vivemos no quotidiano e pelos quais orientamos as nossas decisões. Mesmo num contexto cada vez mais secularizado, muitos portugueses ainda encontram na religião um sentido de pertença e orientação espiritual, mesmo que não sejam os ditos “praticantes”. E o mesmo acontece em Espanha e noutros países tradicionalmente católicos. Aliás, este fenómeno não é estranho a outras religiões: os judeus não são todos praticantes, mas preservam, com forte veemência, a sua herança histórico-cultural; os muçulmanos, a mesma coisa e os hindus também. Ser cristão, como ser judeu, muçulmano ou hindu, implica valorizar características que nos marcam de forma indelével e dar sinais dessa identidade, quanto mais não seja, através destas manifestações pontuais e públicas de religiosidade.

E se existe, de facto, uma necessidade de nos adaptarmos e reinventarmos num mundo em constante mudança, também temos de conservar algumas das nossas tradições, que nos transformam em seres que não têm receio de ser o que são. Se não o fizermos e acabarmos com esta religiosidade cultural – como se fala em Espanha -, acabamos, muito possivelmente, com os poucos momentos de verdadeira confirmação de que as nossas sociedades nasceram e se desenvolveram em torno do cristianismo e que devem dar particular valor a esse facto, dando nota do mesmo.

Para além disso, não podemos esquecer que não só se protege a herança cultural e espiritual do país, mas também se promove o desenvolvimento económico através do turismo cultural. E que esse não é um motivo de somenos importância, num país (e em Espanha é igual), que tem no Turismo um dos seus maiores fatores de criação de riqueza, emprego, valor territorial.

E sei que muitos dos meus amigos se rirão ao ler este texto: não sou particular fã de procissões, de as realizar e ter de participar nelas, mas tal situação não me impede de compreender que têm um valor simbólico, afetivo, identitário e, até, económico, real e importante. Preocupa-me que, apagando-as, possamos apagar esse valor.

Melhor seria que pensássemos em dar melhor formação aos católicos (leigos e clérigos), preparando-os para serem capazes de ultrapassar um nível de praticar a religião mais popular e menos exigente ao pensamento, que, esse sim, me parece ganhar força e peso excessivos. Ter nas comunidades uma massa crítica atuante, sem preconceitos e sem medos de enfrentar quem cogita de modo diferente e o manifesta, mas, sobretudo, que não se fixe somente nas manifestações mais populares, fará crescer a Igreja como instituição que, nas nossas sociedades, tem a função de ser parceiro no moldar do pensamento e no rumo do desenvolvimento.