D. Manuel Clemente deixou ontem claro, em Monte Gordo, que a fundação da Europa resultou das missões cristãs que ocorreram a seguir à queda do Império Romano do Ocidente, do século V ao X.


O patriarca emérito de Lisboa – que proferiu à noite uma conferência para assinalar o Dia da Europa, numa iniciativa promovida pela paróquia local – lembrou que essas campanhas foram realizadas, geralmente por monges, que “partem para levar a sua fé a povos que não eram cristãos”.


Especialista em história, D. Manuel Clemente, na autêntica aula que apresentou no salão paroquial com quase uma centena de participantes, recordou os sucessivos povos bárbaros que conquistaram o território a que hoje chamamos Europa, na altura, em boa parte, pertencente ao Império Romano.


O conferencista evidenciou que esses três grandes contributos missionários foram o romano-beneditino, que, tal como esta designação indica, era composto por monges da tradição de São Bento (beneditinos) que partiram de Roma até à Inglaterra; o celta, com monges que vão da Irlanda para a Escócia, seguindo para Inglaterra e prosseguindo até ao norte de Itália; e o grego, constituído por São Cirilo, um dos padroeiros da Europa, e outros monges que se deslocam da antiga Constantinopla (hoje Istambul, na Turquia) até à Rússia, convertendo os eslavos do leste da Europa e os russos.

“A pouco e pouco estes povos vão passando ao Cristianismo, tendo uma base cultural comum”, explicou D. Manuel Clemente, acrescentando que a Europa aparece assim no século X com o contorno que tem hoje, da cordilheira russa dos Urais ao Atlântico e do Mediterrâneo ao Mar do Norte, “com uma unidade não apenas geográfica, mas cultural e religiosa”.
Lembrando que nem tudo foi “fácil e pacífico” porque houve disputas dos diversos reinos, o historiador passou em revista os principais conflitos militares ocorridos desde o século XIV com a Guerra dos Cem Anos, que opôs ingleses a franceses; a tentativa de império napoleónico no século XIX; a Guerra Franco-Prussiana na segunda metade do século XIX entre franceses e alemães; a I Guerra Mundial, na qual Portugal acabou por entrar, e que resultou em 10 milhões de mortos e no desmembramento do Império Austro-húngaro que se divide por diversos países que vão desde a Áustria e Hungria até aos Balcãs; e na II Guerra Mundial que causou 40 milhões de mortes.

D. Manuel Clemente lembrou a propósito destes dois últimos conflitos a ação dos papas de então, sublinhando no primeiro o esforço de Bento XV para “ver se consegue acabar com a guerra” e que “fez uma série de avisos”, advertindo que a humilhação da Alemanha levaria a “pagar muito caro por isso”. “Na II Guerra Mundial, já que não se resolvia o conflito, Pio XII ensaiou criar uma rede internacional de apoio às vítimas”, recordou.
O patriarca emérito identificou então as três figuras consideradas como os “pais da Europa”: Robert Schuman, nascido no Luxemburgo, mas cuja família era da Lorena, região disputada pela França e Alemanha, e que foi primeiro-ministro e depois foi ministro dos Negócios Estrangeiros da França; o alemão Konrad Adenauer; e Alcide De Gasperi, embora nascido em território que na altura pertencia à Áustria e que voltou à Itália, tendo sido primeiro-ministro deste país.

“Além de serem cristãos e católicos convictos tinham uma outra característica comum: todos eles tinham andado de um e do outro lado da fronteira, todos estes homens tinham conhecido a guerra de muito perto”, realçou D. Manuel Clemente, explicando que a sua intenção foi “a reconstrução do continente com o maior idealismo possível: fazer uma Europa que finalmente resolva os problemas em conjunto, se desenvolva em conjunto e cujos recursos básicos sejam repartidos”, ou seja, “criar condições para que não haja rivalidades entre os países europeus”.
O cardeal lembrou que a matéria-prima eleita para a reorganização industrial do continente foi o carvão e o aço, numa alusão à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) que uniu Bélgica, Alemanha, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos e que esteve na origem do que veio a ser mais tarde a Comunidade Económica Europeia (CEE) e, posteriormente, a atual União Europeia.

D. Manuel Clemente aludiu ao “sonho com os pés na terra” dos “pais da Europa”. “Esta mistura de pés na terra e cabeça aberta aos sonhos é que fez a Europa e temos de concordar que é um projeto muito bonito”, afirmou, pedindo aos presentes para terem isso em conta quando forem votar daqui a um mês para eleger os deputados para o Parlamento Europeu. O conferencista disse que “há quem fará tudo para desagregar esta União Europeia que não lhes interessa nada” e que as bombas de Hiroshima e Nagasaki, “segundo os especialistas, são «brinquedos» comparadas com as que existem hoje”. “E se em Hiroshima foi o que foi… juizinho porque senão não sobrará Europa. E o momento é realmente perigoso, este que estamos a viver”, avisou.
O Dia da Europa é comemorado anualmente a 9 de maio, para festejar a paz e a unidade do continente europeu. A data assinala o aniversário da assinatura da «Declaração Schuman» em 1950, que conduziu à CECA.

No final da conferência, que contou com a presença do pároco, o padre Tiago Pereira, e dos presidentes da Câmara e da Assembleia Municipal de Vila Real de Santo António, bem como dos vereadores e do presidente da Junta de Freguesia. O presidente da Câmara disse que a intervenção do patriarca emérito, mais do que uma “aula de história”, “foi uma aula de cidadania”. “É importante que tenhamos a noção que a Igreja tem este papel também. A Igreja não se limita a transmitir catequese. A Igreja tem este papel de formar os seres humanos”, afirmou Álvaro Araújo, considerando a conferência de D. Manuel Clemente uma “lição para a vida”. “Todos percebemos a importância da Europa. Quem não tinha a noção, hoje aprendeu aqui muita coisa. Se não tivesse sido a fundação da Europa, às tantas, tinha havido a terceira guerra mundial. Não tivemos mais guerras porque alguém um dia se lembrou de formar a Europa”, concluiu.






Depois da palestra, foi realizada uma oração pela paz e de consagração a Nossa Senhora que serviu de acolhimento da imagem peregrina de Nossa Senhora da Piedade, popularmente evocada como «Mãe Soberana», que está de visita àquela paróquia, e que contou também com a participação dos cónegos Carlos César Chantre, vigário-geral da Diocese do Algarve, e Carlos de Aquino, reitor do Santuário da «Mãe Soberana», e do padre Ferdinando de Freitas, que também participaram no momento anterior.