
Foi quando já estava a trabalhar, depois de ter concluído o curso de Engenharia Civil na Universidade do Algarve, que António Moitinho de Almeida decidiu entrar no Seminário.
A fase de revolta iniciada aos 17 anos com a morte do seu pai e o consequente período de procura interior de um caminho para a sua vida, levou-o a iniciar um percurso de discernimento vocacional que terminará no próximo domingo, 16 de junho, com a sua ordenação sacerdotal, pelas 17h, na igreja de São Pedro do Mar, em Quarteira.
O futuro padre da Igreja algarvia, de 32 anos, filho mais velho de um casal de lisboetas, também nasceu na capital, na freguesia de São Jorge de Arroios, mas viveu sempre em Tavira. Entrevista e fotos por Samuel Mendonça
Perdeste subitamente o teu pai. Recordas que foi um momento de revolta que, mais tarde, levou ao “encontro com Deus” no processo de aceitação e retoma da vida normal. Este acontecimento foi marcante na tua caminhada rumo ao sacerdócio?
Sim, foi marcante pela questão, muito prática, de mudança de uma «fé infantil» para uma «fé adulta». E esse crescimento na fé implicou as exigências da vivência dessa mesma fé. Na procura e na ânsia de tentar encontrar resposta para essa vivência da fé, por sentir necessidade de ser mais na comunidade e de entregar-me mais, deparei-me com a questão: «Porque não o Seminário?».
Mas começaste a pensar nisso ainda antes de entrar na universidade?
Não, não. Já foi depois da universidade. Foi, praticamente, durante o ano de estágio, já no mundo do trabalho.
Mas achas que se não tivesses tido esse acontecimento na tua vida, relacionado com o teu pai, terias seguido o mesmo caminho?
Não vou dizer que não teria chegado aqui também, mas, pelo menos, não da mesma forma, porque sinto que foi uma das coisas que fez diferença. Olhando, agora de longe e passados estes anos, para o «puzzle» constato que, para além do sofrimento da perda, ter vivido o processo de três anos de ver a pessoa a sofrer, influenciou muito esta decisão.
É uma experiência que me enriqueceu. Penso, concretamente, na questão da celebração de funerais e de acompanhamento das pessoas que vivem o sofrimento. Se não tenho essa experiência física como posso aconselhar, aproximar-me e conviver com essas pessoas para ajudar verdadeiramente? Teoricamente, pode-se sempre dizer coisas bonitas, mas é diferente. Assim posso ser autêntico no sentido de lhes dizer: «eu sei o que é que estás a passar. Sei que não é igual, mas também passei por isso. A mim, isto ajudou-me e poderá também ajudar-te». Esta disposição também me deu força para avançar.
Mas, tudo somado – o acontecimento com o meu pai e todo o processo de procura – é que levou a este desfecho. Andei quase todo esse ano à procura de uma resposta, numa ânsia interior de saber o que é que Deus queria para mim e de mim. E nessa ânsia acabei por falar com o padre Pedro [Manuel] e ele fez-me a pergunta: «E porque não o Seminário?».
Mas, então, não estavas convencido com a engenharia civil?
Gostei muito de fazer o curso e gostava muito de trabalhar na área, mas a questão não era a parte profissional. Era a parte espiritual.
Não estavas convencido de que a engenharia civil fosse o teu futuro…
Pois…
…nem algo que te realizasse.
Era insuficiente, não chegava.
Mas vias-te a casar e a ser pai de família?
Nos últimos anos, olhando agora já com uma visão um bocadinho diferente, não tanto. Claro que na altura era o projeto normal porque é o que nos é incutido desde miúdos.
Punhas, portanto, essa hipótese?
Claro que era a hipótese, quase a única, que eu punha. Por isso namorei e fiz o processo normalíssimo que qualquer jovem faz. Ser pai foi sempre um desejo que tive, mas namorar e ter uma pessoa que me acompanhasse, agora, quando olho para trás, noto que nunca foi assim tão relevante para mim. Ser pai, biologicamente, também não é tudo. É preciso ter alguém por quem realmente se sinta algo especial para se construir uma vida a dois para sempre. E a construção de uma vida a dois para sempre é o mesmo que a construção de uma vida como sacerdote. A questão é sentir que se está no caminho certo e isso é também uma coisa que se vai discernindo e construindo ao longo dos anos. A partir dos 20 anos, nunca mais andei à procura de namorada. Não vivia nesse tipo de ânsia, nem nesse tipo de necessidade. Isto também ajudou, às tantas, a perceber que não era por aí. Nos últimos anos – que foi praticamente quase todo o tempo da universidade – não namorei, nem tive, propriamente, intenções disso. Acho, sinceramente, que essa opção era também já o início de qualquer coisa.
Mas quando é que percebeste claramente que a tua vontade era o sacerdócio?
Acabou por ser um bocado com a conversa com o padre Pedro que a coisa se começou a encaixar. A tal pergunta que me fez foi o clique que me levou a pensar: «se calhar é isto que eu ando à procura». E depois, ao longo dos anos de Seminário, foi a confirmação de que realmente era mesmo, porque a partir do momento em que entrei na instituição, aquela ânsia, aquela busca e aquele desejo ardente de algo mais, foram saciados.
Sentiste que estavas no caminho certo?
Exatamente.
Tiveste caminhada cristã desde novo?
A minha caminhada cristã começou em novo, mas não muito novo. Os meus pais eram católicos, mas afastaram-se da Igreja. A minha mãe teve a sua reconversão e foi nessa altura que começámos a vir novamente à Igreja.
Portanto, foste batizado e depois?
Fui batizado já com 11 anos, mas iniciei a catequese três anos antes. Comecei a catequese com 9 anos e depois tive um processo catequético regular: não parei, nem abandonei a catequese a meio. A única altura em que houve alguma quebra foi no final da adolescência com a morte do meu pai, mas não deixei a catequese.
E na paróquia, para além da catequese, o que fazias mais?
Fazia parte do coro e depois fui também catequista.
Portanto, estiveste sempre inserido na paróquia?
Sim, vivi sempre inserido na comunidade. No coro sempre estive muito inserido e, a partir de 2004, comecei a ser catequista.
E durante o percurso, tanto no Seminário Menor como no Seminário em Évora, mantiveste sempre essa determinação ou houve algum momento em que surgiram dúvidas?
Em termos gerais, mantive. Só tive um momento mais complicado, mas não teve a ver com a vocação. Foi por ter havido uma espécie de «guerra fria» entre seminaristas. Isso levou-me a duvidar se deveria continuar ou não no Seminário. Mas a questão do chamamento de Deus para o sacerdócio é uma coisa que não mudou, foi relativamente constante ao longo de toda a caminhada, que teve altos e baixos normais, crises de fé ligadas a outras coisas, como essa que referi.
E consegues identificar outras experiências que tenhas vivido que te tenham marcado positivamente para te decidires a seguir este caminho?
Sim. Por exemplo, uma relacionada com colegas meus que são ateus, vincadamente ateus…
Colegas teus…
… de engenharia, amigos meus que me deram a entender que desde que entrei no Seminário passei a ser muito mais feliz. Para uma pessoa que não é crente parece surreal dizer que o outro está melhor ou mais feliz ao viver uma condição que para ela não faz sentido. Considero isto um dos sinais mais interessantes porque, aos olhos humanos, é algo improvável.
Para além disto, a experiência que fiz no ‘SolSal’ em Évora também foi muito edificante.
Isso é o quê?
‘SolSal’ é o serviço de solidariedade salesiana. É um projeto que presta apoio às famílias: alimentar, escolar, atividades extracurriculares.
E como é que surgiu a possibilidade de integrares o projeto?
Foi proposto e apresentado numa reunião aos seminaristas em Évora e eu integrei o projeto-piloto.
E o que é que fizeste, concretamente?
Dei apoio aos miúdos, praticamente todos pré-adolescentes e adolescentes.
E esse apoio era prestado a que nível?
Ajudava nos trabalhos de casa, no estudo e também a nível pedagógico na questão dos valores, para além da dimensão espiritual. Poder ajudar estes jovens a crescer foi também muito edificante nesta caminhada.

E experiências em grandes encontros de juventude, não viveste?
Não. A única experiência desse tipo que tive, e que fez até parte do processo de acalmia da revolta, foi ter ido uma semana a Taizé. Fui no Verão, antes de entrar na universidade.
Sentes que também te ajudou nessa fase?
Foi importante. Todas as experiências são importantes para podermos construir aquilo que somos, depende é de como as interpretamos porque podem ajudar-nos a sermos mais humildes ou mais revoltados. É questão de escolher qual é o lado que preferimos. Foi muito importante porque eu estava numa fase de abrandamento da revolta e, em Taizé, acabei por voltar a experimentar verdadeiramente a presença de Deus, a paz e a tranquilidade interior que já há algum tempo não sentia. E isso foi importante para retomar a vida normal. Nessa altura, com 1,76 m, pesava cerca de 45 quilos. Não comia, não queria saber de nada. E esse encontro fez com voltasse a fazer sentido viver, lutar pela vida e seguir em frente. Por isso, resolvi fazer uma formação que me interessasse e a engenharia interessava-me.
Mas sempre te interessou desde novo?
Desde os meus 5/6 anos que ia para obras com o meu pai. Passava a vida em obras.
Mas qual era a profissão do teu pai?
Era arquiteto.
Então, houve uma certa influência para o meio da construção civil?
Não propriamente, não é bem a mesma coisa. Mas cresci um bocado dentro do ambiente. Mas o meu irmão também cresceu e foi para uma área completamente diferente.
Mas querias ser engenheiro civil?
Sim. A construção sempre me fascinou muito. E não deixo de gostar por ser sacerdote. Sempre fui muito ligado à área da matemática.
Então, se for preciso construir alguma igreja ou algum centro paroquial, a paróquia terá a pessoa ideal, não é?
[Risos] A pessoa ideal, não. A «pessoa ideal» será sempre uma empresa [risos]. Mas terá alguém que pode ajudar no processo.
A irmã Lúcia Maria, superiora das Carmelitas Descalças, disse na vigília de oração da tua ordenação diaconal que frequentas o Carmelo “há alguns anos” para rezar e que “serás, com certeza, um grande sacerdote pelo amor que testemunhas à vida de oração”. Que importância tem a oração na tua vida e qual a relação com a capela daquele mosteiro de Nossa Senhora Rainha o Mundo?
A oração é uma parte muito importante na vida de todo o cristão e sempre foi muito importante para mim. É a conversa direta com Deus. A questão do silêncio é uma questão de caráter mais pessoal. Eu gosto de estar em silêncio. Gosto de, simplesmente, estar ali. Não é preciso grandes palavras, é, simplesmente, o estar. Eu estou aqui e Jesus está ali. Não é preciso grandes diálogos. Estamos simplesmente na presença um do outro. Isso é muito importante para mim, sempre foi e acho que continuará a ser para encontrar paz interior. Para encontrar paz interior temos de arranjar formas de a poder alcançar e o Carmelo ajuda muito nesse sentido. É um espaço próprio para isso, as irmãs também fazem esse tipo de vida. Portanto, a própria casa e o seu ambiente são propícios a isso e eu também gosto muito do Carmelo por causa disso.
E também vou lá muito porque acho que as irmãs merecem o carinho da nossa parte, de sentirem que não estão sós. Eu acompanho e sinto a importância delas aqui na nossa diocese e por isso, desde que estou no Seminário, faço questão de, quando possível, estar com elas e dar-lhes esse apoio porque não é fácil a vivência delas ali no mosteiro, sozinhas. Acho que elas também precisam de sentir da nossa parte também esse apoio e, por isso, também a minha presença.
Elas são um elemento importante da diocese. Se não me engano, o D. Manuel disse uma vez, que elas são um «pulmão» da nossa diocese. O Seminário é o «coração» e elas são um dos «pulmões». Portanto, temos de cuidar do pulmão e, dentro das minhas possibilidades, dou sempre o meu contributo.
Como é que projetas a tua maneira de exercer o ministério? Achas que serás vocacionado para alguma área particular?
Vocacionado para uma área específica não vou afirmar porque é muito relativo. Mas, a julgar pela experiência do ‘SolSal’, parece que tenho jeito para a criançada. Mas penso que estar a limitar demasiado nesse sentido é ser um bocado fechado naquilo que Deus possa querer para mim. Se calhar penso que não tenho jeito nenhum para idosos e afinal posso ter. Simplesmente não tenho contacto com eles. Se antes de começar, me fecho numa «caixinha» dizendo «eu tenho é jeitinho para os jovens e vou ficar aqui», se calhar, não descubro outras possibilidades que poderão ser interessantes.
E qual achas que será o maior desafio que vais encontrar depois de seres ordenado?
Acho que atualmente o maior desafio são os casais porque a ideia de família hoje está, completamente, e cada vez mais, destruída. Se queremos famílias – uma casa com pai, mãe e os filhos – vamos ter de lutar muito.
Quer dizer que também vais dar uma atenção particular a esse setor?
Vou pelo menos tentar. As ideias são boas, mas o concreto é sempre um bocadinho diferente. Mas penso que está um bocado descurado e se puder colaborar nesse sentido, vou colaborar, como em tudo o resto que puder. Vou dedicar-me de alma e coração àquilo que me for pedido. Se me dedicar a 100%, mesmo que não seja o ideal, pelo menos dei o meu melhor. Darei o meu melhor e, depois, Deus fará o resto.
Como é que tem sido a experiência de estágio em Santa Bárbara de Nexe e Estoi?
Interessante. É o oposto da cidade de Tavira.
Oposto em que sentido?
São pequenas comunidades, muito pequenas em alguns sítios, porque incluem, por exemplo, os Gorjões e a Bordeira que são mesmo minicomunidades com uma dúzia de pessoas…
O que é completamente diferente de uma paróquia urbana.
Exatamente. Esse é um aspeto interessante. Eu estava habituado a uma paróquia, cujo coro é quase mais numeroso do que estas comunidades e passei para um sítio desertificado por força do atual estilo de vida. Mas é interessante sentir a genuinidade das pessoas que se entregam e que se dão, que acabamos por conhecer verdadeiramente e acabam por nos conhecer também a nós. É um grupo mais restrito e praticamente podemos conhecer as pessoas todas pelo nome e quais os seus problemas. Essa possibilidade da proximidade também é interessante.
E na tua preparação ficas tanto com a experiência prática de uma realidade mais urbana como a de uma realidade mais rural, porque poderás ter de passar por uma delas ou pelas duas.
Pois. Todas as experiências são positivas pela possibilidade de nos desenvolvermos e crescermos.