A Diocese do Algarve, através do seu Centro de Estudos e Formação de Leigos do Algarve (CEFLA), promoveu ontem uma jornada formativa sobre Direito Canónico.

A iniciativa, que teve lugar no Centro Pastoral de Ferragudo e como formador o cónego Rui Barros Guerreiro, licenciado em Direito Canónico pela Universidade Gregoriana de Roma e juiz do Tribunal Interdiocesano de Évora, Beja e Algarve, contou com 62 participantes, sobretudo alunos do Curso Básico de Teologia do CEFLA.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Na formação, sob o tema “Fundamentos para a existência de um ordenamento jurídico na Igreja”, o orador começou por explicar que o Direito Canónico visa, sobretudo, “dar alguma ordem à dimensão visível da Igreja”, ou seja, à organização de “homens e mulheres cristãos crentes com personalidade jurídica” e à forma como se relacionam uns com os outros e explicou que a personalidade jurídica na Igreja é ganha com o batismo.

Neste sentido, lembrou que “a lei existe para prever o comportamento”, mas também “tem caráter educativo”. “Ajudar-te a perceber quais são os teus limites”, concretizou, acrescentando que as leis ajudam a que todos se possam “realizar como pessoas”. 

O cónego Rui Barros Guerreiro lembrou que a presente edição do Código do Direito Canónico (CDC) é de 1983 e que foi o “último documento do Concílio Vaticano II”, substituindo o anterior Código de 1917. O sacerdote explicou tratar-se de “uma síntese de uma série de leis que foram passando de geração em geração”. 

O orador esclareceu ainda que o Direito Canónico é o “direito para a Igreja universal”. “Mas depois existe um direito particular que é aquele que o nosso bispo, que é o legislador na nossa diocese, decide”, acrescentou, referindo ainda que os cânones do CDC “dizem respeito unicamente à Igreja latina”, aplicando-se apenas aos cristãos católicos da Igreja latina. “Os cristãos católicos da Igreja oriental têm um código de uma outra forma”, completou.   

O formador lembrou que o CDC está divido em sete livros, cada um deles tratando de determinados temas, e que os livros estão divididos em partes, sendo que, dentro destas, há as secções, os artigos, os cânones, os parágrafos e os números. “Tem 1752 cânones, que significa regra ou linha, para dizer que a nossa vida, enquanto católicos, tem de estar dentro dessas linhas”, acrescentou. 

O cónego Rui Barros Guerreiro abordou então os livros que compõem o CDC: o Livro das Normas Gerais; o Livro do Povo de Deus, incluindo as partes referentes aos fiéis, à constituição hierárquica da Igreja e aos institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica; o Livro do Múnus de Ensinar a Igreja; o Livro do Múnus Santificador da Igreja, incluindo as parte referentes aos sacramentos, aos outros atos do culto divino (sacramentais) e aos lugares e aos tempos sagrados; o Livro dos Bens Temporais da Igreja; o Livro das Sanções na Igreja, incluindo as partes referentes aos delitos e às penas em geral e às penas contra cada um dos delitos; e o Livros dos Processos, incluindo as parte dos juízos em geral, do juízo contencioso, de alguns processos especiais, do processo penal e do modo de proceder nos recursos administrativos e na remoção ou transparência dos párocos.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Referindo-se ao sexto livro, sobre as sanções, ou, direito penal, explicou que este “teve uma evolução” motivada pela consciencialização dos “caos de violência ou pedofilia”. “Quando em 1983 este Código saiu, estes casos não eram falados”, constatou, acrescentando que o Papa Francisco quis, por isso, reformular a parte do direito penal. 

O formador explicou ainda que, em caso de impedimento do bispo, o vigário geral, que tem jurisdição e substitui o bispo em toda diocese, possui apenas poder executivo, enquanto o bispo tem poder legislativo. O cónego Rui Barros Guerreiro referiu que os decretos do bispo, de nomeação e de homologação, só têm valor quando têm a assinatura do chanceler.

Referindo-se às “questões bonitas” que o Direito Canónico levanta, deu como exemplo, no âmbito do Livro do Múnus Santificador da Igreja, o cânone 1240 sobre os cemitérios, lembrando que “o cristão deve ficar sepultado num terreno que seja sagrado”. “Se o nosso corpo é sagrado, se foi batizado, pertenceu a Deus, recebeu os sacramentos, não pode ser deitado à terra num lugar qualquer. Tem de estar num terreno e numa sepultura que seja sagrada, que tenha uma bênção”, afirmou, acrescentando: “se não houver um cemitério paroquial — antigamente havia, mas agora já não existem — há os cemitérios civis, mas não se fez a bênção do cemitério porque, se calhar, as forças laicas opuseram-se a que fosse benzido. Então, cada vez que se vai fazer um funeral, benze-se aquela sepultura para que aquele corpo, que teve a dignidade e a graça de ser cristão, seja sepultado num lugar que foi sagrado, benzido, abençoado”. 

Concretamente sobre o processo de declaração de nulidade do matrimónio, deixou claro: “A Igreja não anula casamentos”. “O que se faz é declarar a nulidade do matrimónio”, explicou. A este nível, explicou, como exemplo, que “o casamento não se anula porque houve uma traição”, desde que, aquando da celebração matrimonial, tenha sido celebrado em consciência por ambas as partes. “Se sempre se deram bem, mas houve uma traição passado anos e o consentimento foi dado em condições, não se anula porque houve, de facto, casamento. Agora se, antes do casamento, durante o casamento e se meses ou anos depois do casamento a relação foi turbulenta, então aí podemos ver se, de facto, quando houve o casamento as pessoas estavam em condições de casar”, distinguiu, explicando que “se o consentimento não é dado em condições não houve realização do casamento” e que este “tem de ser dado em liberdade”. “O que acontece é irmos ver como é que eram as pessoas em termos de maturidade psíquica, o comportamento antes e depois ou quais as verdadeiras intenções”, completou.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

“Quando se exclui ter filhos também pode ser declarado nulo. Uma coisa é não conseguir ter filhos, outra é casar mas não querer ter filhos”, prosseguiu, acrescentando como causa para a nulidade a “incapacidade para assumir as obrigações essenciais do matrimónio”. “São incapazes de contrair matrimónio os que carecem do uso suficiente da razão; os que sofrem de defeito grave de discrição do juízo acerca dos direitos e deveres essenciais do matrimónio, que se podem dar e receber mutuamente; os que por causas de natureza psíquica não podem assumir as obrigações essenciais do matrimónio”, enumerou, citando o cânone 1095. 

O juiz explicou ainda que o processo de declaração de nulidade, analisado sempre por um coletivo de três juízes (presidente, instrutor e relator ou juiz) e defensor do vínculo, é composto pelas seguintes fases: apresentação do libelo, nomeação do tribunal, aceitação e fixação da dúvida, notificação das partes, instrução, sessões, publicação dos autos, conclusão da instrução, advertências do defensor do vínculo, decisão do tribunal coletivo e notificação às partes.