O novo acordo ortográfico, aprovado em 1991, depois de muitas vicissitudes começou agora a ser aplicado, embora ainda sem obrigatoriedade.
As palavras são as mesmas, a ortografia de algumas é que muda. A língua é viva e a palavra é o mais belo e eloquente instrumento de comunicação. Até certo ponto, a linguagem tem a liberdade de ser criativa e expressiva. Por isso, sujeita a novas maneiras de dizer e de ler ou, muitas vezes, de reler. Com mais propriedade, com o brilho e o estímulo da novidade.
No pulsar da comunicação não é só o léxico que muda. Embora com um grande distanciamento, também há fórmulas, expressões, atitudes, liturgia e palavras de doutrina ou de oração, que têm sido enriquecidas ao compasso do tempo (dos novos tempos) e à luz de normas conciliares. Muitas destas ainda sem aprofundamento por parte do povo de Deus.
Não pretendo abordar esse mar de mudanças e de ensinamentos mas apenas, nesta busca da verdade, agarrar um ou dois desses pontos, e desnudar o meu pensamento acerca do sentir e do desassossego dessa busca.
Nos bancos da catequese de menino (há quanto tempo isso foi!) ensinaram-me a rezar o "Padre -Nosso", e a pedir "perdoai-nos Senhor as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores". Obviamente, a mudança impôs-se. A palavra Pai não deixa dúvidas, e a sua abrangência não tem limites. As "nossas dívidas" faziam de nós caloteiros inveterados e desfalcados, pois estávamos a pedir que o nosso nome fosse apagado do livro do Senhor, em troca de riscarmos no nosso os cifrões (agora euros) que por lá estivessem anotados. E ai está um exemplo concreto da propriedade das palavras, da clareza da linguagem.
Esta expressão foi substituída por "as nossas ofensas" e "a quem nos tem ofendido". O catecismo diz que pecado é uma ofensa feita a Deus. O dicionário diz que pecado significa falta, carência. Neste contexto, ofensa é desamor, contra-amor. Falta é não-amor, ausência de amor.
E eu pergunto: com a nossa insignificância, com o nosso "tamanho", com todas as nossas carências amorosas, conseguiremos "ofender" a Deus que é o Amor total, absoluto e único? Ele sabe e conhece e sente a nossa pequenez. E ama-nos tal como somos, porque é PAI. "É na força do amor de Deus por mim, que me quer feliz e me quer realizado, que me quer plenamente humano, solidário na minha relação com os outros", e na minha falta de correspondência a este amor, que eu descubro o sentido profundo do pecado. "Deus quer-nos felizes e criou-nos para sermos felizes. Deus está em comunhão comigo e com todos os seres do mundo e com todo o mundo que criou. É esta consciência de quem é Deus, este sentido de Deus, que me faz tomar consciência do pecado". Se eu sentir e reconhecer a intensidade do amor de Deus por mim (embora humanamente sujeito à incapacidade de avaliar a sua dimensão) poderei aperceber-me que não estou a corresponder a esse amor. E isto é uma falta, uma angustiante carência de paz. É pecado. Mas será ofensa?…
O padre franciscano Brennam Manning, autor de, entre muitas outras obras, "O Evangelho maltrapilho" (impressionante este título!) diz que "O pecado, aquele velho dínamo, perdeu muito do seu poder desde que deixámos de acreditar no inferno". Acho interessante a ideia, digna de reflexão e de discussão, mas talvez por falta de acuidade mental, passa-me ao lado. Quer dizer – eu não acredito no inferno como fogo, como "choro e ranger de dentes", como castigo. Acredito em inferno no seu verdadeiro sentido – como ausência de Deus, como morte do amor. Esta doutrina não é novidade, não é das "coisas últimas", quase se pode incluir no rol das "penúltimas" mas, mesmo assim, acho que não está suficientemente pregada e esclarecida. Parece que se receia pegar na "novidade" permanente da Boa-Nova, vesti-la com roupagem atual, redescobrindo as palavras e o seu sentido (muitas vezes o seu primitivo sentido) e colocá-la no centro da "praça", iluminada pelos projetores do amor.
É urgente a militância ao serviço de um novo "acordo ideológico" que promova a comunhão do conhecimento, da atualidade religiosa, e nos conduza e ajude no aprofundamento da fé.
(Este texto foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico da língua portuguesa)