1 – Na interpretação da Sagrada Escritura deve dar-se especial importância ao seu sentido literal. Ele é a base dos demais sentidos. Na peugada, porém, dos Padres da Igreja que não sabiam as regras modernas de interpretação, mas tinham um sentido profundo da fé e uma particular afeição ao sentido espiritual da Palavra de Deus, podemos e devemos, tal como eles faziam, nunca separar os vários sentidos que a Bíblia pode conter. Será de ter em conta, a propósito, o que nos ensina o Catecismo da Igreja Católica: «A letra (o sentido literal) ensina-te os factos (acontecidos no passado); a alegoria ensina-te o que deves crer; a moral, o que deves fazer; a anagogia, para onde deves tender» (CIC 118). De facto, todos estes sentidos devem ser tidos em conta, quando queremos atingir o significado profundo da Sagrada Escritura.

2 – Para uma maior precisão sobre esta matéria, vale a pena tornar presente o que nos diz, sobre o assunto, o mesmo Catecismo já citado. Existem dois sentidos fundamentais na Palavra de Deus: o sentido literal, que se expressa por palavras da Escritura e pode descobrir-se através da exegese, segundo as regras da correcta interpretação; o sentido espiritual que nos leva a descobrir sinais de Deus nos acontecimentos que nos são narrados pela letra. Este sentido espiritual das Escrituras pode subdividir-se em três aspectos: o alegórico pelo qual podemos adquirir a compreensão mais profunda dos acontecimentos, relacionando-os com Cristo: por exemplo, a travessia do Mar Vermelho pode tomar-se como um sinal da vitória de Cristo e como um sinal do nosso Baptismo; o moral, enquanto os acontecimentos narrados na Escritura nos conduzem a um comportamento mais justo e mais perfeito; o anagógico, ou seja, aquele sentido de eternidade contido na Escritura e para o qual aponta toda a revelação bíblica. (Cf.CIC.116-117).

3 – Abraçando, em simultâneo, todos estes sentidos, estamos mais próximos da intencionalidade dos textos sagrados, na medida em que não nos limitamos apenas às técnicas humanas de interpretação, mas nos deixamos guiar, mais acentuadamente, pela luz da fé que nos deve guiar sempre na leitura da Sagrada Escritura. É que, no fundo, trata-se de entender, sob o influxo do Espírito Santo, o sentido expresso nos textos bíblicos. Aliás, é a isso que nos conduz o facto de acreditarmos que o Antigo Testamento se cumpre em Cristo, centro das Escrituras, e, de modo especial, do Novo Testamento. Nós, cristãos, somos convidados a reler todas as Escrituras, à luz deste novo contexto (Cristo, morto e ressuscitado), ou seja o contexto da vida no Espírito.

Transcendendo a pura literalidade da Escritura, mais facilmente, esta se torna um processo de vida, porque a Palavra de Deus não se destina apenas a iluminar a inteligência humana, mas o homem no todo da sua vida. A letra, só por si, mata; o Espírito é que dá vida. Aliás, como disse Santo Agostinho, o que torna credível a letra da Escritura, é a transcendência da mesma letra, porque, somente transcendendo-a, encontraremos resposta para as mais profundas inquietações do nosso espírito, sempre sedento de verdade.

*bispo emérito do Algarve

O autor deste artigo não o escreveu ao abrigo do novo Acordo Ortográfico