O padre Rui Fernandes afirmou na passada terça-feira que, após o afastamento entre a Teologia e a espiritualidade com o período da modernidade, a contemporânea reaproximação entre ambas pode ser “lugar privilegiado” para conhecimento do mistério.
Na formação, promovida pela Diocese do Algarve através do seu Centro de Estudos e Formação de Leigos sobre Teologia Espiritual no Centro Pastoral de Ferragudo, o sacerdote jesuíta disse que “hoje em dia o regresso da Teologia à espiritualidade ou da espiritualidade à Teologia é uma questão epistemológica, ou seja, tem a ver com o conhecimento”. “A nossa experiência espiritual pode ser um lugar privilegiado para conhecermos alguma coisa sobre o mistério”, completou, considerando que “hoje em dia está-se a tentar recuperar a espiritualidade no modo de fazer Teologia”.
“A nossa experiência espiritual dá-nos informação teológica. De uma maneira mais simples: na oração conhecemos Deus. Portanto, deveríamos regressar à nossa experiência espiritual para perceber o que é que ela nos informa sobre Deus”, defendeu na formação com cerca de 50 participantes, sobretudo alunos do Curso Básico de Teologia do Centro de Estudos e Formação de Leigos do Algarve, considerando que “a espiritualidade e a Teologia estão de mão dada”.
O sacerdote — que na primeira parte da formação percorreu “momentos-chave de experiências de espiritualidade” desde as primeiras comunidades ao período da modernidade, passando pelo legado dos Padres do Deserto e pela vida monástica — lembrou que nos séculos XV e XVI “a fé e a espiritualidade vão ser consideradas formas de superstição ou formas demasiado emocionais”. “A espiritualidade vai ser acusada de pietismo, pouco racional, pouco lógica, pouco razoável”, referiu.
Outra “nota muito importante para a vida espiritual” lembrou ser a “escatologia”. “É a ideia de que hoje, aqui, podemos começar já a viver alguma coisa do reino dos céus”, explicou, acrescentando: “há lugares onde podemos fazer experiência do reino de Deus de modo mais vibrante”.
Referindo-se ao modo como a espiritualidade e a Teologia se deveriam voltar a relacionar, o formador, que apresentou alguns dos pilares da Teologia espiritual, sobretudo em torno de dois conceitos — a ascese e o êxtase —, explicou que o primeiro tem a ver com “o trabalho de criar condições psicológicas, emocionais e morais para a vida espiritual”. Nesse sentido, evidenciou que “a oração é o habitat natural da vida espiritual” e que “o bê-á-bá da oração é a respiração”. Garantindo que a mística, “lugar de experiência pessoal de Deus”, “não é património exclusivo de uns quantos”, advertiu que “só se chega a alguns sítios da vida interior” se forem criadas condições para isso. “É desta intuição de que há certas coisas que eu só posso ver se criar condições para isso que nasce a ascese”, sustentou.

O padre Rui Fernandes disse ainda que a vida espiritual “ganha em qualidade” a partir do modo como se envolve o corpo. Nesse sentido, explicou que “a vida espiritual está ligada a processos de conversão”. “A mudança na relação com o meu corpo e com a minha liberdade, com o tempo, com o lugar, com a minha inteligência, a descoberta de coisas que me prendem ou que me libertam”, concretizou, acrescentando que “os encontros espirituais profundos são transformadores”. “Qual é que é o objetivo de toda a vida espiritual? Deixar-me transformar por Deus a ponto de ser com Deus. É isto que Deus quer fazer connosco”, afirmou, lembrando, a propósito, que a vida espiritual tem três vias. Segundo explicou, a “purgativa” visa “limpar”, a “iluminativa”, “conhecer” e a “unitiva”, “ligar”. O sacerdote disse serem, “mais do que etapas, dinamismos” e aconselhou ainda a que não sejam compreendidos como “degraus sucessivos”. “Devo entender que há uma parte disto que não tem a ver com o meu esforço”, advertiu.
O formador disse ainda que “os sacramentos oferecem um complemento” à vida espiritual e que “falta recuperar o uso dos sentidos”. O padre Rui Fernandes aludiu à importância de distinguir entre espiritualidade e espiritualidades. “Quando falamos de espiritualidade, estamos a falar de, pelo menos, duas coisas: primeiro, uma necessidade antropológica e uma dimensão da nossa forma de sermos humanos; segundo, uma característica da vida cristã que é comum e pertença de toda a Igreja. Consiste no encontro com Deus. Quando falamos de espiritualidades estamos a sublinhar outro lado da experiência básica e concreta que é da diversidade, da pluralidade”, diferenciou, lembrando que “as várias correntes de espiritualidade variam normalmente nas metodologias”.
O sacerdote distinguiu ainda espiritualidade de religiosidade. “Normalmente, na religiosidade há a ideia de norma imposta e, normalmente, é vista com uma certa nota mais negativa ou, pelo menos, de maior peso”, afirmou, constatando que “as pessoas têm necessidade espiritual, mas para elas essa necessidade tem mais a ver com o mundo interior, de saber lidar consigo e com os outros” e que “a necessidade de pertença a uma comunidade é fortíssima”. “A necessidade de pertença é uma necessidade humana estruturante. Até que ponto é que a nossa experiência comunitária ajuda a dar respostas que são antropológicas, existenciais e espirituais?”, questionou.