
“Sepultar os mortos e cuidar dos vivos”, expressão que popularmente é atribuída ao Marquês de Pombal e que terá sido proferida aquando do terramoto de 1755, esteve fortemente em causa por estas bandas. Aliás, ontem estivemos mesmo em risco, caso o resultado da votação na Assembleia da República sobre os projetos de lei favoráveis à legalização da eutanásia tivesse sido outro, de a mesma ser hoje alterada para “sepultar os mortos e matar os vivos que estão cá a encalhar”.
Quando me propus a escrever este texto, há já alguns dias, mesmo antes da votação, decidi que não analisaria esta questão pela vertente religiosa e crente, porque, apesar da certeza da fé e esperança cristã na vida eterna e no valor supremo da vida, seria sempre uma análise subjetiva e estaria a limitar a defesa de princípios essenciais à fé de cada homem.
Mas gostaria de deixar aqui algumas questões para a nossa reflexão comum, que talvez nos possam ajudar a perceber a incongruência que encerra este debate.
Primeiro, gostaria de saber porque é que o partido PAN (Partido das Pessoas, Animais e Natureza) e o PEV (Partido Ecológico Os Verdes) apresentaram, em 2016, projetos de lei sobre o fim do abate de animais nos canis municipais, que foram, aliás, aprovados pela Assembleia da República e agora, estes mesmos partidos vêm defender a prática da eutanásia para os seres humanos? Alguns poderão dizer que são temáticas diferentes. Se calhar até são, mas eu acredito que pode haver relação. A vida de um cão coxo e doente, para estas forças partidárias, está ao mesmo nível, senão num nível superior, da vida de uma pessoa que, por debilidade física, já não pode ser “útil” à sociedade, a não ser conversar com os outros que o vão visitar ou que “dá trabalho”, porque médicos, enfermeiros, familiares, cuidadores devem ter outras prioridades… Não sou contra o cuidado dos animais, note-se e deixo aqui bem frisado. São obra da criação e devem ser extremamente respeitados, mas não entendo que não se tenha um desejo semelhante em relação aos seres humanos e que se ache ser “mais digno” permitir que se mate – porque na eutanásia há sempre alguém que mata e não apenas alguém que deseja morrer…
Segundo, será que o partido político que suporta o governo e que apresentou um projeto de lei para legalizar a eutanásia, não teria um dever bem maior de trabalhar no sentido de dotar os hospitais públicos de condições de dignas para tratar de todos os doentes ao invés de gastar dinheiro para “matar dignamente” pessoas? Veja-se a absoluta degradação da ala pediátrica do IPO do Porto… Vejam-se os muitos doentes (maioritariamente idosos, está claro) que permanecem dias a fim nas alas de decisão clínica dos hospitais, verdadeiramente esquecidos, quando não têm quem os acompanhe e que são mandados para casa ou para os lares sem soluções para os seus problemas, sem dignidade, não pelo seu desejo de morrer – falem com eles, porque a grande maioria não é isso que quer! -, mas pela forma incorreta, pouco humana, pouco sentida como são descartados. Não era isto que os deveria preocupar?!… Mais: não deveria antes preocupar-se em criar condições dignas a pessoas, que na casa dos 50 anos e por terem doenças degenerativas em avançado estado, não têm outra hipótese senão ir para um lar de idosos e conviver com pessoas fora da sua faixa etária e longe da sua consciência, o que só leva a uma maior degradação do seu estado de saúde?!… Humanizar faz falta e não dignificar o desejo de morrer.
Terceiro, não devia um governo preocupar-se em criar melhores condições hospitalares nos hospitais de província, de forma a evitar que um doente (como certamente muitos outros) vítima de um acidente de viação há mais de um mês tenha visto uma operação, absolutamente vital, ser adiada cinco vezes e quando chegou à sexta vez, teve que ser adiada porque o colete cervical, como não foi mudado e lavado durante um mês, criou uma perigosa ferida que levou o neurocirurgião a adiar de novo a dita intervenção cirúrgica até a ferida estar sarada, em vez de canalizar verbas do Orçamento do Estado para a criação de meios que permitam a morte assistida?
Suicídios, sempre houve e haverá! Espero que nunca haja suicídios financiados com o nosso dinheiro, com o dinheiro de cada um de nós.
O nosso dinheiro tem que servir para cuidar e não para matar! E podem acusar-me à vontade de demagogia, mas a minha demagogia “facilmente deixaria de a ser” (se eu hipoteticamente agisse na certeza de que o era) se todos os que têm responsabilidades governativas, são lideres de opinião, enfim, podem falar com facilidade e visibilidade, tomassem as decisões certas e trabalhassem não na dignificação da morte, mas da vida, que sim, essa merece ser protegida. Incongruências e verdadeiramente demagógicas, que não deveriam sequer ser preocupação.