Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

A nova publicação da investigadora algarvia Patrícia de Jesus Palma vem desconstruir “a ideia feita de um Algarve que, ao contrário das restantes regiões, não tinha tido uma rede de bibliotecas religiosas, como aconteceu no resto do país entre os séculos XVI e XVIII, que alimentasse a formação das elites locais”, constituídas pelos 18% de população alfabetizada.

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A certeza foi deixada pela própria autora no passado sábado na Biblioteca Municipal de Faro, na apresentação da obra, intitulada ‘O Reyno das Letras: a cultura letrada no Algarve (1759-1910)’, que vem “contestar uma série de ideias estereotipadas, de mitos e de preconceitos” que “davam conta de um Algarve culturalmente ausente, isolado e desatualizado”.

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Patrícia Palma garante que “o Algarve não esteve nem mais nem menos à frente, mas desenvolveu iniciativas e estratégias” com “pessoas e instituições que mantiveram a sincronia e a sintonia culturais com a restante sociedade portuguesa oitocentista”. “O que encontrei foi uma rede de instituições e de pessoas, tanto no foro privado como no foro público, que foram possibilitando e fortalecendo a integração da sociedade portuguesa (não só da sociedade algarvia) na cultura escrita”, afirmou.

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A investigadora rejeitou assim “a imagem de uma região desprovida de cultura bibliográfica porque os seus conventos não teriam bibliotecas ou teriam pouco ou más bibliotecas”. “A investigação permitiu perceber que não foi assim e reconstituir essa rede no Algarve das bibliotecas religiosas, localizar os catálogos, os inventários, fazer uma análise da qualidade dos catálogos dessas bibliotecas, que não consente a ideia de desatualização cultural de bibliotecas paradas no tempo”, explicou.

Patrícia Palma acrescentou que o trabalho permitiu assim “comprovar realmente a importância das bibliotecas religiosas dos conventos como centros culturais de formação e de intervenção na sociedade com importante contributo para o desenvolvimento do livro e da leitura, tendo encontrado inclusivamente conventos que disponham dos seus próprios prelos tipográficos”. “Ou seja, o convento não era só um espaço de leitura, era também um espaço de produção”, acrescentou na sessão que contou com a presença da diretora regional de Cultura do Algarve, Adriana Nogueira, do presidente da Câmara de Faro, Rogério Bacalhau, de João Luís Lisboa, do Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa e orientador do doutoramento do qual resultou a obra.

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A autora – que rejeitou também a ideia de que com a expulsão dos jesuítas se extinguiu a formação letrada no Algarve porque “nem a Companhia de Jesus tinha o exclusivo do ensino, nem a região, por isso, ficou desprovida de bons mestres” – destacou ainda o papel relevante , na formação intelectual do bispo do Algarve que teve a “ideia da fundação” do Seminário de São José, D. José Maria de Melo, “um reformador no campo das letras”.

“Deve ser considerado nessa galeria do século XVIII ainda de protagonistas, tal como D. Frei Manuel do Cenáculo, um dos mais conhecidos e estudados que fundaram e financiaram bibliotecas portuguesas, que tinham como objetivo ainda no século XVIII o uso partilhado, a difusão e a utilidade do saber”.

Segundo a historiadora, o seu “programa episcopal era de tal forma pedagógico, assente no estudo e na partilha de leituras, que a primeira coisa que pensou quando foi nomeado bispo do Algarve foi enviar uma biblioteca devidamente preparada para capacitar o seu clero”.

A autora lembrou que “a Biblioteca Municipal de Faro é hoje a guardiã desta memória de bibliotecas, desde as conventuais de que o século XX já não tinha memória, à biblioteca do Seminário de São José e à biblioteca do Paço Episcopal”.

Patrícia Palma – que também recusou a opinião de “uma região cientificamente desatualizada” devido às “aulas de matemática e de cirurgia nos Regimentos de Infantaria de Tavira e de Lagos, assim como as bibliotecas de um cirurgião-mor do Hospital Militar de Lagos ou a do Regimento de Infantaria de Lagos” –, explicou ainda que a tipografia no Algarve foi reintroduzida logo em 1808, após as invasões francesas. “A imprensa por um lado, o teatro por outro e a música ainda, formam esse tripé da mundividência liberal de que o Teatro Lethes, inaugurado em 1845, um ano antes de D. Maria, é a síntese perfeita”, afirmou, lembrando que em 1860 havia 12 teatros disponíveis ao longo de toda a região e nenhum era de iniciativa estatal.

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A publicação, com quase 700 páginas, é uma edição da Direção Regional de Cultura do Algarve e será também apresentada na próxima sexta-feira na Fnac de Faro.

Patrícia de Jesus Palma, natural de São Marcos da Serra, é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Estudos Portugueses pela Universidade do Algarve, com mestrado e doutoramento pela Universidade Nova de Lisboa, em Estudos Portugueses, respetivamente nas especialidades de Literatura Portuguesa Contemporânea e História do Livro e Crítica Textual.

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Na atualidade, é investigadora integrada do CHAM – Centro de Humanidades da FCSH/UNL, onde desenvolve temas como a circulação cultural no espaço europeu e transatlântico, a história e património da imprensa, ou as relações entre a cultura e o desenvolvimento territorial. Em paralelo, desde 2018, atua no “Lugar Comum”, projeto que criou para investigação, consultadoria, ação cultural e ação educativa e que tem como principais objetivos fomentar o acesso ao conhecimento e à fruição cultural. Tem ainda sido uma das agentes impulsionadoras à criação de um núcleo museológico no espaço da sua antiga tipografia, encerrada em 2012, e da hemeroteca digital do Algarve.