Excerto das comunicações produzidas em Faro, 10 de Abril, Clube Farense; e Lagoa, 26 Abril, na Biblioteca Municipal.

Pretende-se comunicar algumas memórias do Algarve, em culturas repartidas e que se projectaram no século XX, aos níveis paralelos dos centros de cultura europeia.

Comecemos por Faro, em que a cidade recebeu, nesse epíteto de “Cidade Aberta”, que parece dever-se, ao escritor Virgílio Ferreira, enquanto por cá passou, logo no início de 40, e enquanto professor do liceu João de Deus. Mas já no século XI, o escritor, historiador e jurista Ibn Hazm, natural de Córdova, considerava “Faro, uma cidade aberta, dos melhores lugares do mundo”. Se a cidade progrediu nos últimos dois séculos, como se afirmara nos séculos passados, na nossa fortuna de mar e terra, seria, a partir do início da segunda década do século XX, com a República e a primeira guerra mundial, que verdadeiramente o século se iniciou, segundo Armand Guibert, um homem que não deixou de visitar Faro, em Janeiro de 1942. Lá iremos.

Passemos ao “esplendor” de Faro, na Pequena Jerusalém, com a colónia judaica ainda bem instalada e progressiva. Estávamos em 1914. A guerra, a primeira do século XX, aí está na força do colonialismo e nessa ambição Troykiana do russo Nicolau II, do alemão Otto von Bismark e do francês George Clemenceau.

Temos um jovem, aqui nascido, de nome Carlos Porfírio, um jovem que se iniciou no gosto da pintura, pelos seus 8/10 anos, quando o seu pai (também pintor) o iniciou no sortilégio das cores, na pintura do teatro Lethes. O garoto, herdeiro genésico, é mandado, pela vontade paterna, a estudar belas-artes para Lisboa, depois Paris. Entretanto, o jovem completa 19 anos, quando se encontra na capital francesa, nessa efervescência artística que Marineti impregnara no Futurismo, nesse radicalismo, que se vivia por Montmarte, no Moulin de la Galette, contando por companheiros, em amizades boémias e artísticas, um grupo de jovens, desde Picasso, Marineti, Manãch, Le Bock, Gertrud Stein, etc. Eles formam-se, como testemunhas, no Movimento de Marineti: “O Futurismo”. Movimento que Lisboa não aceita. Mas chega até Faro, em Novembro de 1916 Fernando Pessoa, logo fez publicar, em estreia, o seu poema “Casa Branca Nau Preta” (podemos admirar “NAU PRETA”, em calçada portuguesa, sob desenho de Augusto Lyster Franco, no jardim Manuel Bivar, em Faro), em que o semanário “O Heraldo”(1) se transforma no arauto da moderna poética, e que Porfírio assume, tanto como colaborador, criando heterónimos poéticos, ainda, e mais, assumindo a responsabilidade da revista “Portugal Futurista”, trazendo até Faro, Fernando Pessoa e a poesia, ausente Mário de Sá Carneiro, pela morte, em Paris. Mas Almada Negreiros e tantos mais artistas, jovens, nos dois graus, a colaborarem em Faro, no Heraldo. Jovem pacifista, como sempre se mostrou sê-lo, Carlos Porfírio, abandonara Paris em guerra, regressando a Lisboa de cabeça feita às novas ideias do movimento surgido. Logo, é responsabilizado, pelos amigos de Lisboa, uma vez que capital e os moços futuristas, apelidados de loucos, como lepidópteros de Lisboa, como Philéas Lebesgue escrevia para o Mércure de France(2), na sua derradeira fase do decadente simbolismo. Assim a capital portuguesa mostrava-se impediente em aderir ao novo movimento que crescera pela tribuna do jornal parisiense, Le Fígaro. E, é aqui, na cidade de Faro, que o movimento futurista vai ter pernas para andar, pelo apoio de Augusto Lyster Franco, outro admirado pintor e homem do jornalismo, director da escola de artes e ofícios Pedro Nunes, assim como director do seu semanário, “O Heraldo”, que se coloca à disposição do movimento, em que o jovem Porfírio dá todo o apoio e entusiasmo, projectando Faro por todo o país e pelo mundo lusófono, nesse novo movimento que eclodiu por Paris, num entusiasmo crescente, pelos artistas, com o entusiasmo do celebrado escultor parisiense, Auguste Rodin, autor do Penseur, Le Baiser, Les Bourgeois de Calais(3).

Iniciado o novo movimento artístico por Faro, com Carlos Porfírio a assumir a responsabilidade de director da revista “Portugal Futurista”. “O Heraldo” vindo de Tavira, em Abril de 1912, assume-se em Faro, a partir de Novembro de 1916, como o órgão oficial do “Futurismo” em Portugal, publicando os trabalhos do novo movimento que chegam a Faro, vindo de todo o espaço lusófono, e que só a crise do papel, em período de guerra, faz suspender o semanário da cultura farense, abrindo novos caminhos às artes. Não posso deixar em branco, outros acontecimentos que esse movimento deu oportunidade de iniciar-se por Faro, como, em 1916, a criação da primeira orquestra sinfónica, sob a direcção do maestro Rebelo Neves, em estreia no Lethes, com o poema sinfónico de Luis de Freitas Branco, “Paraísos Artificias” (1910), inspirado nas “Confissões dum fumador de ópio”, de Thomas de Quincey, em que Baudelaire já se inspirara. Faro coloca-se nos caminhos da modernidade, em pleno 1916. Logo os homens mais cultos se organizam e criam a “Universidade Aberta”, instalada por aqui e por ali, dado à má aceitação da burguesia elitista local. As conferências já abordavam a psiquiatria Freudiana, quando o sexo, era tabu nas conversas públicas. As exposições de pintura iniciam-se pelos lugares credíveis da cidade: Teatro Lethes, Café Aliança, Clube Farense. Seguindo para Lisboa. Quando a primeira grande guerra termina, em Novembro de 1918, com a desistência da Rússia, meses antes do seu final, na actuação do político francês, Joseph Caillaux, em desanuviar o clima de guerra, no centro da Europa(4). Faro inicia um tempo de crescimento em construções que encheram a cidade da melhor pedra artística. O café Aliança vai ganhar nova face, não menos que os palacetes dos senhores das pescas do atum, das fabricas de cordas, da cortiça, das moagens, dos banqueiros que irão num crescendo até à crise americana de 1929, produzida pela especulação da bolsa, em Wall Street. A guerra e a banca, nas suas especulações, deixara muita gente rica por todo o Algarve. Faro é uma cidade em mudança, é a capital económica, política e religiosa do Algarve. É uma cidade, onde a cidadania nos seus homens e mulheres de cultura se juntam em produzi-la. Por tal se falou nas criações da Universidade Livre, na fundação da Orquestra Sinfónica. A cidade conta com a primeira biblioteca pública (João de Deus), uma imprensa que impressiona pelos títulos novos, que mal se iniciam logo se extinguem. Mas é uma cidade em movimento, com teatros fixos e desmontáveis. E se a cidade mostrara, depois de Lisboa, pelo Lethes o animatógrapho, em 1896, já no meio da segunda década de XX “sonha” com um cinema que não tarda surgir na rua mais cosmopolita da cidade: rua de Santo António. Já os operários ganharam as 48 horas semanais, assim como as fundações das recreativas. O coreto está operacional nos seus concertos executados pelas bandas musicais que se organizam para as alegrias populares e nas solenidades procissionais.

Ao café Aliança mais moderno, fazendo inveja a qualquer capital. Um luxo que o seu fundador José Pedro da Silva não olha a custos, abre-se em esplanadas nas suas duas frentes. É um local de convívio, de discussão aberta ou não menos, depende dos tempos, dos homens e das políticas exercidas. Os poetas, os pintores, mais do que outros que se embriagam nos perfumes dos fumos, botam versos e cores nas metamorfoses da Ria.

Raul de Matos inspira-se, antes de Aleixo, pelas esplanadas. Faro: -Onde o sol acorda e pinta / sempre sorrindo contente / por que para o fim do dia / entorna sobre a Ria / todos os restos da tinta / que lhe sobra do poente.(5)

1) “O Heraldo” jornal oficial do Futurismo em Portugal 1916 /1917
2) “O Futurismo Oficializou-se em Faro com “O Heraldo” 2010
3) “Carlos Porfírio na Pintura Contemporânea Algarvia” –1992-T.N.
4) “The Lost History of 1914-“. Jack Beathy
5) “The L Café Aliança-Seine Fotos-Seine Geschichit”- 1994- T. N.

O autor deste artigo não o escreveu ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

Teodomiro Neto