
O padre António de Freitas disse ao clero do sul do país que a Igreja tem de trabalhar também com as pessoas que, não sendo cristãs ou sendo mesmo descrentes, têm “perspetivas comuns” a respeito da humanidade e da dignidade que se deve revestir a vida humana nas suas mais variadas situações, bem como de valores como a paz, a justiça ou a liberdade, contidos no âmbito da promoção humana e da doutrina social da Igreja.
Na formação anual dos bispos, padres e diáconos das dioceses do Algarve, Beja, Évora e Setúbal, que decorreu em Albufeira e que este ano teve no centro a reflexão sobre o homem, o sacerdote explicou que essas pessoas devem ser entendidas como os “homens e mulheres de boa vontade” a quem os papas, depois de João XXIII o ter feito pela primeira vez, começaram a dirigir algumas das suas encíclicas e exortações apostólicas.
O orador explicou que a partir daquele pontífice, a Igreja percebeu que “não poderia continuar a arrogar a pretensão de ser a única voz autorizada nem a única organização capaz de alcançar a paz, de falar dos males da guerra, de defender a dignidade e a promoção humanas” e que, assim, “a humanidade (nos homens e mulheres de boa vontade) deixa de ser apenas destinatária da ação da Igreja, passando também a ser entendida como cooperadora”.

“Não nos faltam pessoas em vários campos da vida – da educação à saúde, das questões sociais à cultura, do mundo político ao económico – para percebermos onde vive e para onde caminha a humanidade”, acrescentou através do tema “Os homens e mulheres de boa vontade, hoje. Que pontes estabelecer?” que apresentou. “A humanidade e as questões a ela respeitantes não são só nossas e não devemos cair na tentação de em tudo ter o protagonismo ou acharmos que podemos ser os melhores conhecedores”, advertiu, lembrando haver colaboradores que podem ajudar a “compreender determinadas situações do viver humano nos quais possam eles ser peritos”.
O padre António de Freitas explicou que estas pessoas, para além de destinatários, podem ser para a Igreja “um auxílio” e “um contributo para a eficácia” da sua missão. Desde logo, um “precioso auxílio para compreender de verdade os dramas da humanidade” a quem a Igreja é chamada a servir, sustentou. “Quantas vezes, nós, sem sermos peritos ou sem vivermos determinadas realidades, tecemos as nossas considerações e juízos sobre a vida dos homens? E quanto nos seria útil munirmo-nos de pessoas que, mesmo fora do nosso âmbito religioso, nos poderiam ajudar a compreender pelo que passam as pessoas? Estou certo que, em determinadas situações, poderemos contar com a ajuda de alguns para podermos chegar não só à compreensão teórica de determinadas situações da humanidade, mas para chegarmos e atuarmos nelas”, acrescentou.
Como exemplo deste espaço de auscultação da realidade e confronto de ideias, o sacerdote lembrou a iniciativa ‘Átrio dos Gentios’, como expressão de “um debate e um diálogo aberto, sem que alguém tenha que impor a sua visão” e disse que esse diálogo inter-religioso deve ser tido em conta na programação pastoral. “É uma ponte necessária a estabelecer. Penso não exagerar, ao afirmar que este é um campo do qual muito se diz e tão pouco surge. E não faltam nalgumas das cidades das nossas dioceses grupos e comunidades de outras religiões”, afirmou, realçando que “o ponto-chave para que aconteça realmente este diálogo” é o que existe em comum. “Não nos faltam alguns exemplos de que é possível. Um deles foi a capacidade de várias religiões e confissões religiosas se unirem para assinarem a declaração comum a respeito do tema da eutanásia”, considerou.
Referindo-se precisamente ao “mundo da saúde”, o conferencista lembrou que muitos dos temas comuns está nesta área. “Como Igreja, temos erguido a voz quando estas questões vão a votos, mas onde estamos e o que fazemos no tempo restante? E como dialogamos e nos fazemos acompanhar ou valer de homens e mulheres de boa vontade, que comungam das mesmas certezas que nós temos sobre o valor da vida e como nos fazemos valer daqueles homens que em primeira pessoa passam, quer pelo sofrimento quer pelo auxílio ao sofrimento?”, interrogou, lembrando também a área da educação.

O sacerdote destacou que para existir esse diálogo – “que paute pela honestidade, seriedade, desinteresse” e “em que se saiba estar em pé de igualdade”, “escutar e compreender, aceitando a diferença como dom” – é preciso ter em conta uma “linguagem adequada”. “Não sendo novidade, a verdade é que esta continua a ser uma dificuldade nossa. Ainda continuamos a falar uma linguagem que muitos não conseguem compreender”, lamentou, lembrando que para “falar uma linguagem que os outros possam compreender, implica conhecer a sua linguagem, ou seja, escutar de que falam e como falam”. “Este é um aspeto fundamental sem o qual será difícil estabelecer relação com os homens e mulheres de boa vontade do nosso tempo”, alertou.
No campo social, lembrou a realidade de “bairros onde situações problemáticas podem estar presentes, bem como situações de solidão ou de dependências que degradam a dignidade humana”. “Aqui, a Igreja é chamada a agir, fazendo ponte com homens e mulheres que nos podem ajudar a compreender estes mundos. Mas também somos chamados a ser ponte na resolução de alguns problemas”, recordou, advertindo para o risco de a Igreja se fechar em “dois quartéis” – as paróquias e os centros sociais – deixando de ter presente na sua programação e ação pastoral este “cuidado evangelizador ligado à promoção humana”. “Conheceremos de verdade as situações de determinados bairros ou zonas das nossas terras? E como nos temos implicado nelas?”, questionou, defendendo que “a Igreja tem de tomar parte também nestas situações que implicam as reais condições de vida e as situações marginais”.
“Necessitamos de purificar sempre o nosso olhar e o nosso coração para que, algumas situações menos bem-sucedidas, não nos façam cair na desconfiança e no medo que nos levem a desistir”, acrescentou, exortando a olhar para os “homens e mulheres de boa” com os olhos da “cooperação em vez da concorrência”.