Na palestra da passada quarta-feira, o pároco de Loulé afirmou que os “dados históricos” e toda a “memória regista e deixa claro, que o culto à Senhora da Piedade, como não podia deixar de ser, nasceu da fé do povo cristão”, “nasceu na casa da Igreja” e “a sua identidade é profundamente eclesiológica”.

Na reflexão, intitulada “Culto e espiritualidade da Senhora da Piedade”, o cónego Carlos de Aquino baseou a sua intervenção no “relato das visitações da Ordem de Santiago às igrejas algarvias”, para lembrar que 36 anos antes da edificação da ermida de 1553 que lhe é dedicada no monte sobranceiro a Loulé, já na visita à igreja matriz de São Clemente em 1517 e 1518 “os frades da Ordem dão conta de que na capela colateral do lado da epístola, que se dedicava a Santo António, havia um retábulo pequeno de portas com Nossa Senhora da Piedade”.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

“Em 1554, em nova visita, também se confirma que no mesmo espaço continuava «um altar com um painel de portas com Nossa Senhora da Piedade (e) de uma banda um Anjo (e) da outra São João». Referem também a existência numa das capelas laterais a existência de um altar de alvenaria com um retábulo de seis painéis, num dos quais existia a representação de Nossa Senhora da Piedade. Não deixa de ser curioso que em 1565, em nova visita já não se refira o recheio da capela nem a referência a representação pictórica na igreja matriz sobre a Senhora da Piedade, mas a partir de 1565 se noticie pela primeira vez, a existência nos arredores da Vila, da Ermida edificada uns doze anos antes em sua honra com esse orago”, prosseguiu, interpelando: “E se a imagem da ermida for a mesma que já havia estado na igreja matriz?”. “É um argumento tão válido quanto os outros. Não temos documentos podemos supor, mas deixo isto aos historiadores”, considerou.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

O sacerdote defendeu que “a imagem tem uma particularidade que pode suster esta interrogação: o braço direito do Crucificado pende verticalmente para baixo. A sua mão alinha-se, afirma-se como uma concha. Quiçá, como era costume ao tempo noutras imagens da piedade que foram construídas para serem postas sobre o altar do sacrifício, esta escultura da Pietá estivesse também originariamente posta sobre um altar com esse propósito? Assim, a imagem de Cristo apontaria com o seu braço estendido, para o que sucede no altar, onde o santo sacrifício por Ele realizado se faz misteriosamente presente na Eucaristia”. “Deixo esta a reflexão para aprofundamento histórico”, desafiou na reflexão em que começou por apresentar os “textos da Sagrada Escritura que inspiram a evocação da Senhora da Piedade”.

O pároco de Loulé advertiu assim que, “não ignorando as vicissitudes da história, as transformações e mudanças ocorridas no percurso do tempo, esta devoção e piedade à Senhora da Piedade, não pode ser vista como um sentimentalismo estéril ou expressão medíocre e infantil da fé ou mesmo expressão de poeirenta religiosidade; ou da criação de um povo sem rosto e identidade, reduzindo-se simplesmente à sua dimensão humana”. “Se o foi erroneamente e perdurou no tempo, é importante dizer e viver-se hoje, recuperando a memória e a identidade original deste culto que ele não é uma expressão cultual e cultural profana ou vazio de conteúdo e de fundamento”, alertou.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

“Aqui tocam-se, na verdade, os extremos, os opostos: a terra e o céu, o chão e as alturas, o finito e o infinito, o humano e o divino. Não há espaços divisórios entre o humano e o sagrado, o considerado profano e o religioso, o crente e o ateu, o agnóstico e o cristão. Todos são filhos. A Mãe guarda e conduz a todos! E sabe falar a todos! Mas diz-se a todos Mãe de Deus. A Senhora a todos só se diz Mãe de Deus!”, realçou, acrescentando: “ao Santuário peregrinamos em dia de Festa Grande ascendendo interior e exteriormente por um caminho em que se canta e dança com o coração em festa, como crianças puras e livres, partilhando a vida e refazendo-a juntos, num jogo que nos atira para fora do imediato e do próprio mundo”.

“Subimos ao ritmo da música, selados pela alegria, expressão da busca de um mistério. Um andor majestosamente se eleva aos ombros de oito homens, que são expressão de um povo peregrino e de uma terra. Carregam a Senhora como outrora David transportando em dança a arca da aliança para Jerusalém. Essa arca como que vai, hoje, de novo, transportada na imagem do Filho que a Senhora afaga nos braços pronta a lançá-lo à terra cumprindo como Mãe fiel a sua Palavra: «Se o grão de trigo lançado à terra não morrer fica só; mas se morrer dará muito fruto»”, prosseguiu, acrescentando que “as raízes profundas desta expressão religiosa pertencem a um povo crente e peregrino, constituem a honra do povo de Loulé, do Algarve e de todos os que se fazem peregrinos na unidade e na paz, na comunhão da Igreja, à Virgem”.

Mais antiga referência em Loulé ao culto à Mãe Soberana data de 1518