Vivemos um tempo em que a moda global chega antes da memória. Quando esquecemos quem somos, confundimos identidade com consumo. Vale a pena perguntar: o que acolhemos porque nos humaniza e nos enraíza, ou o que importamos apenas porque vende?

Em Portugal, o Halloween espalhou-se por escolas e centros comerciais. Não há mal em brincar; mas a véspera de Todos os Santos, para nós, é também a antecâmara de uma ferida histórica: na manhã de 1 de novembro de 1755, o terramoto que marcou a nossa consciência coletiva, acontecia. Celebrar sustos e bruxas às portas de um dia de luto e memória não nos pede, pelo menos, prudência? É memória civil e religiosa, feita de dor e de aprendizagem. E não seria mais coerente recuperar o Pão por Deus, gesto nascido em 1756, quando Lisboa, faminta e desolada, bateu às portas a pedir pão e a partilhar o pouco que tinha?

O Pão por Deus não é um exotismo folclórico. É solidariedade tornada costume: crianças de saco na mão, vizinhança à janela, nozes, castanhas, fruta e palavras de rezar pelos defuntos. Uma tradição que nos liga ao Dia de Todos os Santos, que honra os mortos e cuida dos vivos. Ao contrário do Halloween importado, não se centra numa estética de medo; centra-se na partilha. Vive em várias regiões, dos Açores à Madeira, com sotaques próprios e a mesma raiz de cuidado.

Sabemos de onde vem o Halloween: raízes célticas no Samhain, cristianização posterior, e uma reinvenção norte-americana com abóboras, “trick or treat” e filmes de terror. Nada disto é crime cultural; mas, quando substitui a nossa memória comum, empobrece-nos. Podemos acolhê-lo como uma brincadeira outonal, mas sem deixar que colonize o sentido do 1 de novembro. A questão não é proibir, é discernir: o que queremos ensinar às nossas crianças neste dia concreto da nossa história?

Curiosamente, enquanto exibimos entusiasmo pelo Halloween, hesitamos diante de manifestações que chamamos — com algum preconceito — de “países menores”. O Ramadão é muito mais do que um jejum; é um período de renovação da fé, autodomínio, fraternidade e maior proximidade de Deus, marcado por práticas religiosas e sociais que reforçam o sentido de comunidade e de espiritualidade entre os muçulmanos no mundo todo. Em vez de ruído e disfarce, há jejum, oração, partilha do iftar (refeição que os muçulmanos fazem ao fim do dia para quebrar o jejum diário) e cuidado com os mais vulneráveis. Dar espaço a que os nossos vizinhos muçulmanos celebrem não ameaça a nossa identidade; lembra-nos que a liberdade religiosa é parte dela. Significativa.

E se, em vez do medo, escolhêssemos a curiosidade? A comunidade bangladeshiana, que agora parece ser apontada por muitos como a maior ameaça à identidade cultural portuguesa (ainda que represente somente cerca de 0,51% da população residente — aproximadamente 55 199 pessoas em 2024), traz consigo a alegria do Pohela Boishakh, o Ano Novo Bengali, a 14 ou 15 de abril. Procissões coloridas (Mangal Shobhajatra), música, comida, famílias na rua: uma festa de vida que não colide com o nosso calendário cristão e até pode ensinar-nos hospitalidade. É saudável, fraterna e afirma a dignidade de um povo que partilha connosco a mesma cidade.

A nossa história pede respeito. Há historiadores que defendem que, sem o terramoto de 1755, não teríamos a Revolução Francesa de 1789. Verdade ou não, sabemos que essa data moldou o nosso modo de pensar sobre Deus, a cidade e o sofrimento. Por isso levamos a sério o 1 de novembro: não para nos fecharmos, mas para lembrar que a memória, quando é justa, humaniza.

Entre máscaras e memórias, façamos escolhas adultas: revalorizar o Pão por Deus como escola de partilha; proteger o recolhimento de Todos os Santos; e abrir espaço, sem medo, a celebrações que promovem comunidade e respeito, como o Ramadão ou o Pohela Boishakh. Não se trata de fechar portas ao que vem de fora, mas de acolher com critério e história. E onde houver crianças, que aprendam que pedir “Pão, por Deus”, gesto que nasceu da dor e se fez gratidão e cuidado. A pergunta, no fim, é simples: queremos uma cultura de adereços ou uma Casa Comum feita de memória, liberdade e fraternidade, na qual sejamos Fratelli Tutti, possamos Laudato Si’ e dizer, sem pejos, Dilexi Te? Se escolhermos a segunda, Portugal ficará mais fiel a si mesmo — e mais aberto aos outros.