Sandra Matinhos, de 37 anos, sul-africana de naturalidade mas filha de algarvios e residente no Algarve desde os seis anos, viu em Junho de 2008 ser-lhe confirmado o diagnóstico de cancro na mama. Deu a volta por cima e ultrapassou a doença com uma invulgar capacidade de resistência testemunhada também no seu blogue. Em entrevista à FOLHA DO DOMINGO explica como Deus a resgatou no momento em que já o tinha «posto» no “banco dos réus” e conta como a doença fez de si uma mulher renovada. De tal forma que hoje, não só encontrou sentido para a doença como até comemora a data do seu cancro. Texto por Samuel Mendonça.

FOLHA DO DOMINGO – A sua primeira reacção foi de pânico e de medo da morte. Perguntou-se “porquê justo a mim?”. Já encontrou resposta para a pergunta?
Sandra Matinhos – Já. Vou encontrando respostas todos os dias. Havia situações na minha vida que eu tinha de mudar, mas não tinha coragem para o fazer. Às vezes acomodamo-nos. Na altura pensei que o aparecimento da doença era muito injusto. Porquê a mim? Eu, uma pessoa tão boa, que não faz mal a ninguém e vive uma vida normal. Porquê ser atingida por esta doença que é quase como uma sentença de morte. Hoje tenho a resposta: foi precisamente para me tornar outra pessoa, outro tipo de mulher e ver e viver a vida de outra maneira e tomar decisões que tinham de ser tomadas para dar um rumo diferente à minha vida.
Numa segunda fase sentiu revolta com tudo, consigo própria, com os familiares, os amigos, com o mundo, com Deus. Porquê?
Lá está, por achar que era injusto ser eu uma vítima desta doença, tão nova, com tanto para dar, com tantos sonhos e ser-me tudo castrado. Quando nos dizem que é um cancro, associamos à morte. É difícil não associar. A revolta veio para com tudo e para com Deus foi uma coisa que não sei descrever. Pu-lo no banco dos réus.
Qual era a sua relação com Deus nessa altura?
Não era muito íntima (risos). Sempre fui católica, embora não praticante na altura. Mas agora tornou-se uma relação muito íntima.
Não era muito íntima porque não frequentava a igreja e porque não tinha uma relação muito próxima com Deus?
É difícil descrever porque é algo que se sente…
Mas tinha completado a iniciação cristã?
Tinha tido catequese, fiz a primeira comunhão e casei pela Igreja. O crisma não fiz. Mas com a doença revoltei-me com Deus e achava que Ele não estava a ser justo comigo e que me estava a castigar por alguma coisa que eu não compreendia. Num momento de revolta, tive um grande diálogo com Ele. Foi num momento de desespero e lembro-me do dia em que falei com Ele a chorar e lhe disse que Ele estava no banco dos réus. Para mim, Ele estava a ser julgado. Repare como me sentia. Mas depois houve uma reviravolta.
A partir do momento em que senti melhoras, dá-me a sensação que fui «tocada». Não sei explicar… Parece que fui «tocada» e «embalada» por Deus. Foi como se Ele me dissesse: “Estou aqui para te proteger. Tem coragem e continua”. Estava a sofrer demasiado com os tratamentos e a determinada altura cheguei ao hospital e disse: “Não quero fazer mais tratamentos. Dêem-me o termo de responsabilidade porque eu não faço mais nenhum”. Mas parece que Deus me disse: “Não te preocupes que Eu estou cá para te ajudar”. A partir daí a minha relação com Deus tornou-se íntima porque falo todos os dias com Ele e partilho tudo com Ele. É algo que não sei explicar.
Numa altura em que precisava de todo o apoio das pessoas que lhe eram mais próximas, o mais difícil foi ter de o fazer sem a pessoa com quem partilhava na altura a sua vida, o seu companheiro?
Sim. Era o meu segundo relacionamento porque já me tinha separado do meu primeiro marido há nove anos. Passados três anos conheci uma nova pessoa com quem vivi três anos e meio e foi muito difícil. Cheguei na altura a tentar medir o que é que me doía mais: se ter cancro, se ser rejeitada por aquela pessoa. Por vezes nem sabia qual a dor maior. Gostava muito daquela pessoa e entreguei-me muito àquela relação e vê-la virar-se de costas para mim foi muito complicado. Eu é que tive de decidir sair de casa, não foi ele que me pôs fora. Mas a forma como me tratava e a sua insensibilidade para com a doença, obrigou-me a sair um mês e pouco depois de ser operada.
Que sentimento nutre actualmente por essa pessoa?
Já o perdoei. Perdoei logo porque sou uma pessoa que não cultivo raivas, ódios ou rancores por ninguém. Gosto de viver em paz. Sinto talvez… Não sei se pena é uma boa palavra, mas às vezes até tenho pena daquela pessoa por ser uma pessoa que não sabe dar valor à vida e perde determinadas coisas em função de outras.
Refere que o cancro mexeu com o seu ego, com a sua auto-estima, com a sua intimidade ao nível da feminilidade e da maternidade. Como é que ultrapassou esse trauma?
Acho que ainda não ultrapassei totalmente. Sou uma pessoa muito vaidosa e quando fiquei sem cabelo foi terrível porque esse é um dos maiores traumas. O facto de sermos operadas à mama – embora no meu caso tenha sido apenas uma mastectomização parcial – e, ao olharmos para o nosso corpo, constatarmos que há ali qualquer coisa que já não está, é realmente muito doloroso. Tento arranjar mecanismos de maneira a que me sinta bonita, ainda que não interiormente. Fisicamente tento manter-me o mais apresentável possível porque sou vaidosa. Não saio de casa sem me maquilhar e arranjar porque isso faz parte de mim. Mas o trauma ainda não está bem ultrapassado. É um complexo que tenho e que vive comigo e que, mais tarde ou mais cedo, terá de ser naturalmente ultrapassado.
Quantas cirurgias fez?
Fiz duas à mama e outra à perna porque tive uma infecção motivada por um rebentamento de um gânglio, aquando da realização de uma das sessões de quimioterapia, que teve que ser extraído.
Afirma que as cirurgias, a recuperação pós-cirúrgica e os tratamentos foram devastadores, quer física quer emocionalmente. O acompanhamento psicológico foi fundamental nesta fase?
Muito importante. Tenho uma psicóloga – a dra. Ana Sofia – que me tem acompanhado até hoje. Tem sido uma pessoa espectacular e a ajuda da parte da psico-oncologia foi fantástica. Também reconheço que sou uma pessoa com um interior muito forte. Ia a baixo mas também arranjava força. Lia muito, exercitava a meditação, ia à igreja e fazia muita coisa para me ajudar a ultrapassar esses traumas porque não era fácil e ainda hoje não é.
Teve também acompanhamento espiritual nesta altura?
Durante as várias vezes em que fui internada havia um diácono – o senhor Rogério, uma pessoa extremamente delicada –, que me ia visitar todos os dias. Ele deu-me um livro que se chama precisamente ‘Porquê justo a mim?’ e esse livro foi uma fonte de força. Ler aquelas palavras foi fantástico.
Na discussão que tive com Deus tive necessidade de ir a uma igreja a que nunca tinha ido (apesar de morar lá perto), num convento de freiras, no Patacão. Nesse dia fui – não me pergunte porquê porque não sei responder – e pedi ajuda. Estive lá muito tempo a falar com Deus e a partir daí fiz uma amizade muito grande com essas irmãs que ainda hoje me acompanham e que têm sido incansáveis nas suas orações que são de uma força brutal.
Surge então posteriormente essa fase de aceitação da doença em que diz ter sentido necessidade de se “agarrar à fé” e voltar-se para Deus. “Foi nesta fase que se deu a minha reconciliação com Deus e redescobri um amor verdadeiro e incondicional”, são palavras suas. O que é que motivou esta transformação?
Não sei…
Foi o livro oferecido pelo diácono Rogério?
Também. Aquele livro é como a minha Bíblia: está sempre comigo em casa, de vez em quando leio-o e inspira-me. Aquele dia foi muito especial para mim. Parece que fui «tocada», que fui levantada do chão e levada à igreja onde estive cerca de duas horas, sem ninguém perto de mim porque pedi para estar sozinha e as irmãs perceberam que eu não estava bem. Chorei e parece que senti qualquer coisa que me «tocou». Não sei exprimir… A partir daí é como se Deus fizesse parte integrante da minha vida todos os dias. Não consigo conceber a minha vida sem a presença de Deus.
Foi então algo muito pessoal. Sentiu então quase a presença «física» de Deus…
Foi. Se alguém me houve dizer isto pode pensar que é impossível, mas foi assim.
Refere que a oração mais do que uma “estratégia ou um remédio para eliminar o sofrimento” foi um “recurso para enfrentá-lo”. Em que medida?
Quando digo oração, não me refiro à recitação de orações pré-formuladas. Não é essa a minha oração. É um diálogo com Deus. A minha oração passa por falar com Ele e isso é que é a minha força. Quando falava com Ele não obtinha resposta no sentido mais objectivo do termo, como estas que agora lhe dou. Eram respostas diferentes. A resposta que obtinha d’Ele era a força que ia tendo todos os dias para enfrentar a doença, à medida que ia vendo que ia conseguindo ultrapassá-la. Foram respostas que Ele me foi dando aos pedidos que lhe fazia. A oração foi o mecanismo para enfrentar os problemas diários que tinha. Muitas vezes também pensei em morrer. Pensava mesmo. O sofrimento era tão grande que chegava a sentar-me na cama e olhar para os medicamentos que tomava e pensar: “era mais fácil tomá-los todos e acabar já com isto”. Mas Ele não me deixava e era como se me desse sempre força para não desistir.
A importância e influência da espiritualidade na acção terapêutica da medicina tem motivado inúmeros estudos contemporâneos que defendem a chamada “dimensão terapêutica” da assistência espiritual. Sentiu esta influência no seu processo?
Muito. A força espiritual foi uma das coisas mais importantes para mim. Para além dos apoios das pessoas e da solidariedade de todos, a parte espiritual, que é uma coisa muito íntima – por muito que eu tente dizer que foi Deus quem me ajudou, é difícil explicar isto aos outros –, foi o ingrediente mais forte para eu estar aqui hoje. E continua a ser.
Admite que a doença veio por “alguma razão especial” e para lhe “mostrar algo de novo”. Já conseguiu encontrar sentido para a sua doença?
Sim. Primeiramente para me renovar como pessoa e isso foi uma coisa maravilhosa. Descobri-me uma mulher diferente. Era uma pessoa muito sensível, emotiva e até dependente emocionalmente e hoje tornei-me uma mulher mais independente, autónoma e fortalecida, no sentido em que sou capaz de enfrentar situações difíceis. Nada me mete medo.
A doença trouxe-me um caminho novo e sinto que tenho uma missão para com as outras pessoas. É como se Deus me tivesse dito: “Eu ajudo-te, mas vais ter uma missão: tens que ajudar outras pessoas”. Eu senti isto. Daí eu ser hoje tão incansável em querer ajudar outras pessoas, em querer partilhar o meu testemunho. Acho que as pessoas têm que sentir que se podem agarrar a Deus para saírem vitoriosos de uma guerra ou de uma batalha.
Para saírem vitoriosos da morte.
Sim. É algo que temos como certo e que temos de aceitar. Na minha idade não é fácil aceitar a morte. Lutei muito contra a morte e vou continuar a lutar, mas aceitarei quando Deus achar é que é chegada a altura de eu morrer.
Embora fazendo o que estiver ao seu alcance para a evitar, aprendeu a aceitar a morte?
Aprendi. Hoje entendo que a morte é um processo da vida e acontece quando Deus acha que tem que acontecer. Hoje vou a um funeral, sofro, mas vejo a morte como a passagem para algo de bom.
…para a vida eterna?
Acredito que sim.
Crê que é fundamental, para a relação do doente com a enfermidade, encontrar esse sentido da dimensão terapêutica da espiritualidade?
Acho que é muito importante. Quando estamos a tratar de uma doença grave, se não houver fé não conseguimos chegar lá. Tenho o exemplo do meu pai. Quando acabei o meu tratamento, começou o meu pai o tratamento do cancro dele. Mas o meu pai tem sido uma pessoa muito mais derrotista. Se tem fé não a revela e está muito entregue à doença. Eu sou diferente porque consegui descobrir um caminho que me ajudou a manter-me forte. Quando lhe digo para se manter forte e persistir nos tratamentos – porque ele fala muito em desistir – vejo que lhe falta a fé. Parece que deixou de acreditar. E eu, por aqui, consigo estabelecer um termo de comparação. Às vezes tenho vontade de levá-lo à igreja para ver se ele sente a mesma coisa que eu senti, mas se calhar não me cabe a mim fazer isso. Ele está muito derrotista e parece que está à espera da morte.
Apesar de ter o melhor exemplo que podia ter.
Sim. E ele foi das pessoas que mais sofreu com a minha doença juntamente com a minha mãe. Mas já na altura reagiu muito mal à minha doença e não me conseguia visitar no hospital.
Crê que é também fundamental, para a relação do doente com a enfermidade, encontrar sentido para a doença?
É fundamental. Enquanto acharmos que a doença é um inimigo não conseguimos aceitá-la e derrubá-la. Quando percebemos que a doença também tem «pontos fracos» e que também temos a nossa força, podemos ser superiores a ela. Uma dessas forças é tentar perceber porque é que a doença nos apareceu, encontrar um sentido, procurar perceber o que é que aquela doença nos vai trazer de novo à vida. Mas isto é uma auto-descoberta muito grande e é trabalho que temos que fazer com grande dedicação e abertura.
Relatou a “mutação de padrões” do passado, a “evolução constante” “onde se aprende e reaprende”. Salienta que aprendeu a “ver, pensar, ouvir e sentir de forma diferente”. Uma simples caminhada na praia emociona-a agora de tal forma que chega a “chorar de alegria”.
Tornei-me intolerante a muitas coisas fúteis da vida…
…e diz: “simplesmente faço o que me apetece”. Aderiu à cultura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que apenas concebe o próprio eu e as suas vontades?
Não. Respeito muito o outro, até porque tenho dois filhos. No entanto relativizo um bocado as coisas no sentido de não dramatizar as situações. Não me tornei mais egoísta ou mais intolerante com os outros. Tornei-me mais intolerante com determinado tipo de pessoas que são mesquinhas ou conflituosas. Não estou disponível para conversas fúteis. Hoje sou capaz de fazer uma viagem porque me apetece e antes era incapaz de uma coisa dessas. Sinto-me hoje mais livre.
Os seus filhos foram também um motivo para se agarrar mais à vida.
Foram. Naqueles momentos em que aparecia a tentação de desistir, tinha Deus de um lado e os meus filhos do outro. Era por eles que eu também lutava e tinha de lhes mostrar que a mãe era forte. O meu filho perguntava-me constantemente se eu ia morrer. Ele tinha 15 anos na altura e a minha filha tinha 13 anos.
Que trabalho tem desenvolvido ao nível do testemunho e acompanhamento junto de doentes que estão na mesma situação?
A meio dos tratamentos, a psico-oncologia pediu-me um testemunho. Numa manhã «lavei a alma» e reparei como estava positiva. Fui também apresentar o meu testemunho num congresso nacional de oncologia para técnicos de saúde. Entretanto convidaram-me também para testemunhar em Janeiro na Universidade do Algarve. Com a Associação Oncológica do Algarve desenvolvi uma coisa gira, um curso de auto-maquilhagem que visa camuflar a aparência provocada pela doença. Aquilo que eu pretendia, estou a conseguir concretizar: ajudar outras pessoas. Não consigo ainda ir para a unidade de oncologia fazer voluntariado, mas poderá ser um objectivo.
Qual é a sua relação com Deus neste momento?
É muito saudável (risos). É uma relação linda. Há poucos dias estava na minha cama a falar com Deus e constatava que tenho um amor tão lindo pelos meus filhos, que é inexplicável, e que tenho outro amor por Deus, sem O ver, que é igualmente inexplicável. É maravilhoso sentir o amor por Ele e sentir que Ele também me ama. Neste momento já sinto necessidade de participar na missa todos os domingos.
Qual é neste momento o ponto de situação da sua doença, se é que ela ainda existe?
Durante cinco anos tenho de fazer um controlo muito apertado. De 4 em 4 meses tenho de fazer exames. Nas últimas análises que fiz, até a minha imunidade subiu e já atingiu os valores mínimos. Sinto-me bem e saudável. Claro que as minhas capacidades físicas não são as mesmas, mas fiz uma auto-educação e sei quais são os meus limites. Ouço os meus sinais e faço as coisas com muita calma, apesar de viver a vida com muita intensidade interior.
Que mensagem gostaria de deixar a uma pessoa que esteja neste momento a passar pela mesma experiência?
As pessoas nunca devem pensar em desistir. Devem acreditar que vão conseguir ultrapassar a doença. E, de alguma forma, irão consegui-lo. Que aprendam, fundamentalmente, a ouvir Deus e a senti-l’O como uma ajuda para a ultrapassarem. Pensem que a doença não vem para as castigar, mas para as renovar. A data do meu cancro é uma data muito especial no bom sentido porque me transformou a vida.
E de que forma é que passa por essa data?
Hoje passo muito bem e comemoro.
De que maneira?
Estando comigo própria, indo à igreja agradecer a Deus. No primeiro ano foi muito difícil, chorei muito, mas agora comemoro. Há pouco tempo, quando soube dos valores das análises, fiz uma grande festa em casa. É uma comemoração diária. (risos)