Padre Miguel Neto

Quando em 2003 o departamento de turismo de Las Vegas criou o slogan “What happens here, stays here” (o que acontece aqui, fica aqui), certamente estava longe de pensar que esse slogan reconhecido mundialmente ia ser desmentido, em 2018, devido a um escândalo sexual com o futebolista mais mediático deste século, o português Cristiano Ronaldo. O que era uma promoção a ser usado pelo dito departamento foi desmentida, ainda que o efeito talvez seja o mesmo, pois Las Vegas continua a ser motivo de atração e de procura de dinheiro rápido, de emoções descartáveis e de aventuras sem consequências para muitos dos que a visitam.

O que se passou em Las Vegas com Cristiano Ronaldo e Kathryn Mayorga teria certamente ficado em Las Vegas, não fosse o movimento “Me Too”, criado em 2017 para lutar contra o assédio sexual e a agressão sexual, primeiro no mundo do espetáculo, mas que depois se estendeu a todos as vertentes do mundo mediático. Este movimento tem mostrado que o silêncio das mulheres vítimas de assédio ou violência sexual existe e se mantém sob varias formas. E tem permitido que muitos predadores sexuais, como Harvey Weinstein, sejam identificados e as suas condutas analisadas pela justiça.

Naturalmente, este movimento não está isento de críticas, que surgem mesmo das próprias mulheres. Factos como a não definição concreta de objetivos, a correção exagerada e a perseguição de pessoas mesmo antes de se chegar à justiça, levando à super exposição de possíveis molestadores que podem efetivamente não o ser, a falta de representação de mulheres de minorias e o centrar em alguns casos específicos estão entre os fatores que motivam censuras.

Mas não podemos negar que o seu efeito tem sido exponencial e que tem levado muitas mulheres a superar o medo de relatar factos que são dolorosos e traumáticos e que silenciaram por muito tempo. E, sobretudo, tem-nos feito refletir sobre este tema.

É comum ouvir-se dizer – e perdoem-me a linguagem mais direta e popular – que esta ou aquela “subiram na horizontal”. Todos identificamos a expressão. Mas não pensamos que, provavelmente na maioria das vezes, essas situações não ocorrem por vontade das mulheres em causa, mas por uma pressão machista e imoral de quem tem, ainda hoje, o poder de contratar, o poder de gerir empresas, o poder de atribuir lugares, empregos, posições. Alguns desses fazem valer-se dessa sua “força” para se imporem em situações em que, muitas vezes, não deixam alternativas a quem procura um lugar que considera ser o seu justo espaço no mundo do trabalho. Mas aos olhos da sociedade, mais uma vez, o lado mais fraco é também o que é julgado com maior dureza…

E agora a história chega a Portugal e toca um português, ainda que se tenha passado nesse mítico lugar onde – pelo menos nas nossas imaginações – tudo é permitido. E não é um português qualquer, é Cristiano Ronaldo, o grande mago da bola, o capitão da seleção nacional, que a liderou na maior vitória que já tivemos neste mundo da bola. Cristiano Ronaldo adorado e reconhecido em todo o lado como “o português”, aquele que assume o espírito desta nação, a referência de tantos miúdos que querem ser futebolistas e o objeto de desejo de tantas raparigas, que o idolatram como a uma estrela da pop ou do cinema.

O herói nacional é acusado de um crime e o país agita-se, sobretudo na sua defesa, porque não é possível que todos nos tenhamos enganado em relação a este jovem, que tem um estilo de vida tão peculiar e tão distante da grande maioria das pessoas no mundo, para já não falar dos seus compatriotas. Vejamos: ganha milhões de euros; vive em mansões e passeia-se por sítios inacessíveis a praticamente todos nós, desfrutando de festas, divertimentos, companhias do mais variado tipo; foram-lhe conhecidas diversas namoradas famosas e menos famosas, que passaram rapidamente ou menos rapidamente pela sua vida e outras nunca saberemos quem foram; tem quatro filhos, sendo que dois deles não foram gerados em relações comuns e “normais” para a maioria das pessoas e que vivem longe das mães, que aparentemente não os quiseram.

Este herói nacional é agora acusado de violação, que terá ocorrido há nove anos atrás e cuja resolução apresenta contornos estranhos, já que há uma indeminização envolvida, bem como uma equipa de gestão de imagem, num momento crucial para a carreira do futebolista, o momento em que se preparava para vir para o Real Madrid. Como se costuma dizer, “não há fumo sem fogo”…

Não sabemos com rigor o que aconteceu, mas sabemos que há um encontro (filmado, até, por camaras de segurança), que revela momentos de grande à-vontade e intimidade e que termina aparentemente na suite do jogador, numa noite de sexo, que não acaba, de acordo com a possível vítima, bem.

As vozes agitam-se: – «Então ela não sabia ao que ia quando foi com ele para o quarto? Mas ela é ingénua ou tinha perfeita consciência do que se passaria? Se ela foi para o quarto com ele, sabia o que ia acontecer! O que ela quer é dinheiro, porque o que recebeu já acabou e agora quer mais! Quem é que lhe estará a pagar para fazer mal ao Ronaldo?»

Estes são somente alguns dos argumentos – aqueles que posso repetir sem descer o nível desta reflexão – que vi esgrimir nas redes sociais nos últimos dias.

E eu pergunto: o facto de uma mulher estar disponível para ter relações amorosas e sexuais com um homem significa que esteja disponível para cumprir todos os desejos dele, ou pode dizer não ao que não quer? Terá de se sujeitar a tudo, ou o seu não deve ser respeitado?

A verdade é que mesmo em casais com matrimónios legais e reconhecidos socialmente existem muitas violações, precisamente e infelizmente porque a mulher ainda é vista como tendo a obrigação de satisfazer o homem em todos os seus desejos. E um não, não é aceite como válido, porque “é obrigação” da mulher satisfazer.

É aqui que, como se costuma dizer e sem querer fazer trocadilhos brejeiros, “a porca torce o rabo”.

É fácil olhar com desdém para a mulher leviana que subiu com o jogador famoso para o quarto e acusá-la de qualquer coisa, mas ninguém olha para o jogador leviano, que com qualquer uma sobe ao quarto, porque isso é normal e aceite na conduta de um homem, numa sociedade profundamente machista, em que até as mulheres defendem a honra do ofendido, sem se questionarem, sem questionarem todos os lados e aceitarem como normal este tipo de relacionamento. E se isto acontecesse com um qualquer, um desconhecido a reação provavelmente até seria idêntica, mas é igualmente verdade que a sociedade ainda não está preparada para que uma mulher negue um desejo sexual a um homem conhecido. E o confronte e se exponha.

O facto de o Ronaldo ser um herói nacional não significa que seja Deus e não cometa erros como todos os homens. Quantos heróis da nossa história não cometeram erros e nem por isso deixaram de ser uma referência naquilo que fizeram de positivo? D. Afonso Henriques, Infante D. Henrique, D. João II, todos realizaram atos imorais, mas também deixaram legados de importância inegável à nossa história e há Humanidade.

O Ronaldo é referência naquilo que sabe fazer melhor: jogar futebol. No resto não é, nem tem de ser uma referência. Ou melhor: até o pode ser, mas não deixa de ser humano como todos os demais e sujeito a falhas, tentações, irreflexões. O mal está no endeusamento humano. Esquecendo-nos de colocar sempre o nosso olhar humano sobre Jesus Cristo, único verdadeiramente Deus sendo plenamente Homem, esquecemo-nos do modelo a seguir, do único modelo a seguir. Pois é o amor que a tudo deve presidir e se assim fosse, neste caso como em tantos outros, não haveria histórias, nem desrespeitos, nem sofrimento. Para todos.