É dia 14 de julho de 2022. Três jovens oriundas de Castelo Branco e Lisboa trocaram uns dias de descanso e divertimento há muito ansiados pela larga maioria dos jovens da sua idade por uma missão de voluntariado durante seis dias na serra algarvia. Percorrem acompanhadas por duas, não menos jovens, Escravas do Sagrado Coração de Jesus os montes da freguesia de Cachopo por estradas sinuosas, debaixo de uma temperatura abrasadora de 38 graus provocada por uma vaga de calor que atravessa o país.
O motivo? Simplesmente para estarem com aqueles que normalmente têm como companhia a solidão imposta por políticas que não apostaram no desenvolvimento do interior e que levaram desde há muito ao êxodo de uma multidão rumo ao litoral em busca de condições básicas de vida.
E não o fazem pela primeira ou segunda vez. Há quase 20 anos que a congregação das Escravas do Sagrado Coração de Jesus desenvolve anualmente, e de forma ininterrupta nesta altura do verão e na Páscoa, um trabalho de voluntariado jovem missionário naquela freguesia. A iniciativa, que inclui também a animação litúrgica de Eucaristias e celebrações da palavra, a recitação do terço, a visita a idosos, nasceu fruto de uma amizade como explicou ao Folha do Domingo o diácono Albino Martins.

Aquele responsável – que rumou em 1990 a Cachopo com a mulher, Cláudia Martins, para ali iniciarem uma missão que já leva mais de 30 anos – explicou que a colaboração surgiu através da irmã Marina Santos, também ela Escrava do Sagrado Coração de Jesus, conterrânea de ambos em Vila Real de Santo António e membro com eles do antigo grupo de jovens da Associação de São Luís da paróquia vilarrealense. “A Marina, uma prima dela e a Cláudia faziam um programa de rádio ligado à paróquia numa rádio local. Também essa proximidade, para além do grupo de jovens, aproximou muito a Marina da Cláudia e foi isso que despoletou este desafio que partiu das Escravas”, contou.

Este ano alojadas na casa paroquial cedida pelo casal Albino e Cláudia, as irmãs Dulce Catarino e Leonor Franco vieram acompanhadas apenas de três jovens: a Maria Ana Vaz Pinto, fisioterapeuta recém-formada e irmã de uma Escrava do Sagrado Coração de Jesus, a Sofia Botelho, matemática de formação a trabalhar numa empresa financeira na área dos fundos de pensões, e a Vanessa Alves, enfermeira numa unidade de cuidados paliativos.
A irmã Leonor Franco explica que a sua congregação, de espiritualidade inaciana (Santo Inácio de Loyola) e, por isso, ligada aos jesuítas, teve sempre como preocupação e carisma a “reparação”. “No fundo procuramos olhar o mundo desde o coração de Jesus e perceber o que é que no mundo precisa de ser reconstruido, reconciliado, que situações precisam de ser reparadas, de ter mais vida”, realça.
A religiosa acrescenta que a congregação, para além de se dedicar sobretudo à educação nos seus colégios, também procura “ajudar as pessoas a serem, elas próprias, reparadas e a encontrarem-se com Deus”. “A nossa missão em Portugal tem sido muito, além dos colégios e da casa de oração que temos em Palmela, trabalhar com jovens adultos. No verão desenvolvemos várias atividades, por exemplo, campos de férias, mas também procuramos ir onde seja mais preciso” testemunha, acrescentando que sempre quiseram desenvolver a sua missão em conjunto com outras pessoas e não sozinhas.
A consagrada lembra que a ligação ao sul do país vem desde o tempo da criação da casa de oração de Palmela como resposta a um pedido do bispo. “Apercebemo-nos que na zona mais a sul de Portugal há uma grande desertificação. Percebemos que havia aqui a necessidade grande de uma presença”, refere a irmã Leonor Franco, explicando que ela passa por “simplesmente estar e acompanhar”. “A pessoa olha e pensa: «É serra, não há nada». Há, há muita vida aqui a acontecer, só que é preciso descobrir”, adverte, acrescentando que a congregação tem a preocupação de convidar outras pessoas para o mostrar. “Venham ver que existe esta vida aqui, venham estar com estas pessoas”, propõe, acrescentando que não se trata de “vir salvar” ninguém porque na experiência, “muito vivida em simplicidade”, “recebe-se mais” do que se dá.
As três voluntárias deste ano confirmam-no. Sofia Botelho, há cinco anos tinha acabado a universidade, quando foi desafiada pela primeira vez para a iniciativa. “Na altura não tinha como dizer que não, não tinha razão nenhuma para recusar. Então vim e depois de ter tido a experiência em Cachopo nunca mais consegui dizer que não cada vez que me pedem para vir. E não há assim uma razão… Sinto-me chamada a vir para aqui, a estar com as pessoas e a estar nesta missão sem grande razão aparente, mas não consigo recusar voltar cada vez que me chamam”, testemunha.
Aquela voluntária que já esteve por três vezes em Cachopo conta que esperava uma realidade semelhante à do Alentejo, mas foi surpreendida. Aqui está tudo embrenhado dentro da serra, escondido atrás das montanhas e de estradas longas, com curvas sinuosas e isso faz com que seja tudo mais distante, com que os montes sejam mais isolados e que se perceba porque é que as pessoas se sentem sozinhas, vão embora e não voltam. Dá para perceber a necessidade de as pessoas verem outras pessoas, pessoas que se preocupam com elas, que vão ao seu encontro, que fazem estes quilómetros e estes caminhos com este calor para chegar a elas. Sente-se muito o sofrimento delas e a solidão”, relata.
Maria Ana Vaz Pinto conta que sempre animou campos de férias daquelas religiosas e que a sua irmã estava constantemente a desafiá-la para a missão de Cachopo por saber ser “muito faladora” e gostar muito de ouvir e contar histórias e de pessoas mais velhas. Este ano voltou a ser convidada para um campo de férias, mas não aceitou por pensar que nesta altura já estivesse a trabalhar, o que acabou por não acontecer. A fisioterapeuta diz que se aprende em Cachopo que o carisma da congregação deve ser levado também para fora dali. “Acho que não é preciso ser Escrava para também levarmos connosco o carisma da reparação”, refere.
Também estreante na experiência, Vanessa Alves rejeitou-a durante 12 anos. Este ano pensava igualmente fazê-lo porque estaria trabalhar, mas os seus turnos “foram desaparecendo um atrás do outro sem que fizesse nada para isso acontecer”. “De repente tinha a semana toda livre e, desta vez, não havia como dizer que não. Vinha outra vez e, se calhar, ficava mais tempo porque parece sempre que o tempo não nos chega. Queremos chegar a todo o lado porque as necessidades são, efetivamente, muitas”, relatou.
“Queríamos muito poder ir a todos os montes e estar com as pessoas todas, mas depois olhamos para o relógio e temos de ir embora. Ficamos tristes. As pessoas preparam a melhor mesa, põem a melhor toalha, vão às compras por nossa causa e depois é triste não poder chegar a todos”, lamenta a enfermeira, acrescentando que o cansaço acaba por não se sentir por causa do acolhimento. “O sorriso que nos dão, a gargalhada que partilhamos acaba por ser maior do que o nosso cansaço. O calor, que é uma condição intensa aqui, acaba por não fazer mossa quando estamos com as pessoas. Acaba por ser completamente secundário porque aquilo que nos importa é mesmo as pessoas”, sustenta.
Vanessa Alves considera a experiência de Cachopo “um alerta” que serve de abanão. “Nós vivemos numa sociedade completamente diferente daquilo que acontece aqui em Cachopo. Aqui eles sabem o que é viver em comunidade. Mesmo não sendo os mesmos [de ano para ano], as pessoas sabem que somos nós. Chegamos a um monte qualquer e dizemos que somos as amigas do senhor Albino e é uma festa. Nunca nos viram, mas somos logo da família e entramos logo nas casas das pessoas, o mais íntimo que têm. Nas grandes cidades não há nada disto. Cada um vive lá no seu quadradinho e aqui não. Aqui, se nos faltar um ovo, basta ir ao vizinho. Se calhar é uma chamada de atenção. Que vida é que levamos? O que é que andamos a fazer lá onde vivemos?”, prosseguiu, considerando que a vinda a Cachopo a ajudou a recentrar-se. “Vir a Cachopo pôs-me no sítio, a voltar a centrar no que é mais essencial porque, se calhar, eu também me perdi algures por aí e estava a precisar disto”, disse.
A missionária considera ser necessário os participantes replicarem o objetivo desta iniciativa nos locais onde residem. “Depois de viver Cachopo estamos mais preparados para ir, deixar o nosso «aquário» e fazer outras coisas junto de quem está ao pé de nós”, refere Vanessa Alves.
A irmã Dulce Catarino explica que os destinatários da iniciativa são os jovens entre os 20 e os 35 anos de idade. Ao longo destes quase 20 anos já foram cerca de 50 os que fizeram a experiência.
A congregação considera que a persistência desta experiência em Cachopo, que não é feita noutras partes do país, ajuda a “vivê-la com mais profundidade”. “Não só porque as pessoas já nos conhecem e temos esta amizade, mas também porque acho que a missão se vai aprofundando com esta permanência. Vamos avaliando e discernindo a forma de estar a cada ano e, por isso, nesse sentido é uma vantagem permanecer aqui para ir também percebendo quais são as «janelas» que o Senhor vai abrindo em Cachopo de mais missão”, refere a irmã Dulce Catarino que participou na primeira missão na paróquia algarvia há 10 anos, quando ainda não era consagrada.
A irmã Leonor Franco defende que a continuidade na missão em Cachopo “é uma questão de fidelidade”. “Foi Cachopo que conhecemos e com Cachopo que criámos uma relação e é com Cachopo que queremos continuar a ser fiéis às pessoas. Acho que é mesmo esta lógica nada empresarial de olhar ao custo de vir uma semana por tão poucas pessoas. É precisamente por isso. Sejam poucas, sejam muitas, é uma relação de fidelidade com as pessoas que já conhecemos”, sustenta.
“Cachopo para mim é como se fosse um pulmão que nos relembra o que é que é importante. Falando da nossa congregação relembra-nos que somos chamadas a fazer esta opção pelos mais pequeninos, opção por quem está nas tais periferias. E falo de congregação, mas também a nossa vocação cristã. Acho que temos ganho em redescobrir a nossa verdadeira identidade como cristãos que é estar ao serviço dos outros e ter uma vida partilhada”, acrescenta, explicando quererem “que outros possam também experimentar esta vida entregue e que, com essa experiência de estar ao serviço dos outros, descubram a sua própria vocação”. “Essa deve ser a missão da Igreja: ajudar outros a descobrir o seu lugar no mundo. Há uma frase do hino da Jornada Mundial da Juventude 2023 que acho que é o que nós procuramos: «Vem ver o que eu vi». Se eu vi isto em Cachopo, não posso não propor a outras pessoas que façam esta experiência”, conclui.
A irmã Dulce Catarino considera que o tempo da missão em Cachopo “é transformador”. “Foi transformador quando vim antes de ser Escrava e continua a ser transformador porque é um tempo em que Deus se revela nas coisas mais simples e mais pequeninas. Revela-se nos encontros, na oração partilhada nesta pequenina comunidade/grande comunidade, no lar, no testemunho do Albino e da Cláudia. E isto, a nós, Escravas, também nos aproxima mais de Deus. Para perceber quem é que é Deus e o que é que Deus quer para mim concretamente”, refere, reconhecendo ter sido uma experiência “importante” na história da sua vocação. “Foi uma experiência muito transformadora de encontro com Deus e com os outros, de descobrir que podia ter uma relação pessoal com Deus”, acrescenta.
O diácono Albino Martins explica que as missionárias estão “também disponíveis para ajudar sempre nalguma habitação degradada ou numa situação pontual a precisar de um serviço mais técnico” e “se não estiver ao alcance delas tentam encontrar solução”. Por outro lado, aquele responsável acrescenta que “também tentam promover algumas atividades com crianças”. “É uma bênção para nós e uma boa ajuda. As pessoas já sentem falta delas. E, quando chegam aos montes, cria-se logo uma grande empatia”, realça.
As Escravas do Sagrado Coração de Jesus nasceram em finais do século XIX, em Espanha, sendo intenção da sua fundadora, Santa Rafaela Maria, “criar uma família com uma missão particular na Igreja: reparar o Coração de Jesus, com uma vida centrada na Eucaristia, através da sua celebração e adoração”. Hoje existem cerca de 1000 Escravas, espalhadas por 130 comunidades, em 23 países.