Lembro-me de ir com a minha avó Lurdes ao Hospital ver uma velhinha que lá estava. Não sei dizer em que contexto a minha avó lá ia. Sei que a ia ver periodicamente e eu ia com ela. Não me lembro do que lhe dizia, nem se ia ver outros velhinhos. Provavelmente iria, já não sei. Eu era bem pequenita, não teria mais de 6 anos. A senhora estava lá há muito. Eu pouco podia fazer, mas recordo-me de lhe virar a almofada, para ficar “mais fresquinho para a cabeça”. Lembro-me do toque de uma das minhas mãos pequeninas a segurarem-lhe a cabeça e da outra a virar-lhe a almofada com todo o cuidado. Lembro-me do cheiro a hospital, dos lençóis brancos e dos olhos grandes da senhora, por trás dos óculos de massa. Lembro-me da voz doce da minha avó a dizer-me “— ela gosta muito que lhe faças isso, fica mais confortável”. E eu guardei esse gesto comigo, estes anos todos. Não soube quando morreu, o que lhe aconteceu, quanto tempo lá esteve, naquele hospital. Esta história aparece difusa na minha memória, como uma névoa doce onde paira o nosso pensamento de vez em quando. Mas lembro-me muitas vezes disto. Da ternura desta menina para esta velhinha, muito velhinha. Lembro-me disto quando se fala nos nossos velhos, nos hospitais, nos lares, nas casas de repouso, nos velhinhos e velhinhas das famílias. Lembro-me deste episódio e de outros também, mas deste com um quê especial. Mesmo agora, aos 50 anos. Como se a memória tivesse uma cola que junta cenas e retalhos de vida, fazendo-nos sorrir.

Somos um País de velhos. Cada vez vivemos mais e temos, todos, mais probabilidade de viver mais anos, salvo o imponderável da vida, que também o tem. E acho que urge sensibilizar para a velhice: “o exercício da perda”, ouvi algures alguém dizer… Sensibilizar para a velhice: para os mais velhos “ainda novos”, que ainda estão a envelhecer, ainda são ágeis, funcionais, curiosos, vão atrás do que é novo, moderno, diferente, avôs e avós que navegam na Internet, têm smartphones e conduzem nas autoestradas, vão buscar os netos à escola e levam aqui e ali, asseguram fins-de-semana e ajudam sempre no que podem; mas urge sensibilizar também para aqueles velhinhos e velhinhas que precisam da “almofada fresquinha”, que estão acamados, surdos, semidementes, dementes e dependentes sempre, a toda a hora, de outros, ou outras. Os verdadeiros protagonistas da perda, de uma perda visível, palpável, física, tocante, perda de capacidades, autonomias, escolhas. E sensibilizar para isso deve começar na família, na escola, nos grupos, nas conversas, nas atividades, nos fóruns de discussão e partilha. Sensibilizar para isso, não é, utopicamente, acabar com os lares, pois sensibilizados e conscientes, saberemos que isso careceria de uma alteração profundíssima no tecido social, que não sei se será para as próximas gerações, nem sei se será alguma vez possível. Sensibilizar para isso é aguçar também nos miúdos e nos jovens e em todos, a busca da doçura e da empatia, que farão com que cada um tenha um imensíssimo respeito e um baixar de cabeça com admiração, de cada vez que se fala num velho, num lar, numa demência por velhice, ou numa idade avançada. Sensibilizar para isso, seria falar com os velhos sem infantilizar o discurso ou o tom, não os achando (a tantos) destituídos de lucidez, capacidade de decisão ou iniciativa. Respeitar a sua (ainda) válida capacidade de resposta. Mesmo que mais lenta, repetitiva, impertinente, ou desconfiada.

Falo muito nisto aos meus filhos. Não sei que velha serei. Não sei se chegarei a velha. Mas ficaria muito feliz se estas coisas lhes fossem passando pelos poros, lhes fossem sendo significativas, como presumo que já sejam, pela forma como tratam os avós. É que, a forma como tratamos os (mais) velhos, não só nos faz entrar num jogo de imaginar o futuro e de pensar em como gostaríamos que viesse a ser connosco, como também nos obriga a um exercício de respeito e admiração por alguém que já viveu mais, sabe mais, já foi como nós e pode agora, na fragilidade que transmite, ajudar-nos a mergulhar na dimensão da generosidade, esse mar de possibilidades que nos faz ser melhores.

Pois é… tão fácil, isto…!

P.s – A palavra “velho” só tem sentido pejorativo se quisermos. Se nela se encerrar uma coisa chamada RES PEI TO, passa a ser uma palavra bonita, de sentido, de intenção e de uso sempre carinhoso.