Era meu tio e viveu até aos 102 anos. Era um dos irmãos da minha avó materna, aquele logo a seguir a ela, pois ela era a mais velha. Chamava-se José Gastão, mas todos o tratavam por Zeca. “O tio Zeca”…, como era tratado por nós. Alto, bonito, de sorriso fácil, muito culto, eloquente, gostava de ter conversas sobre o espírito, a arte, a vida e as coisas. Jogava xadrez e lia muito. Os “seus livros”, como dizíamos. Tínhamos todos uma ternura imensa por ele e infundia mesmo qualquer-coisa-de-doce, que não sei explicar. Sei que muitos amigos e amigas da minha prima lhe chamavam “pai Bandeira”, talvez porque infundisse mesmo esse conforto de pai, de colo, de farol, de rocha, de ternura e, por isso, qualquer coisa, boa, leve, aconchegante, ou forte.

Enternecia-me a relação dos filhos, netos e bisnetos com ele e dava por mim a pensar que, se calhar, por osmose de amor, recebia tudo isso e por isso, era tão lúcido e tão sereno. Uma serenidade que lhe reconheço também na irmã Teresa, a tia “Teresinha” e de que me lembro também na minha avó. Aquele trejeito de sorriso e de voz das pessoas boas e pacificadas.

Mas, hoje, é da fragilidade na antecâmara da morte que quero falar. De um corpo de 102 anos, a partir, a ir devagarinho, de uns órgãos a falir, à vez e de uma voz que, em gemido, tipo chamado, como um címbalo, repetia “Bela”, o nome daquela que escolheu e que o acompanhou durante tantos anos. E assim, na primeira fila, a assistir à outra dimensão da vida, que é a morte, eu vi, sem querer, um chamado e uma prova de amor. E sorri.

Querido tio. Que amor maravilhoso tiveste com a tua Bela, minha tia. Acredito e sei que os legados passaram e passarão, para todos os teus. Pela minha parte, dou graças por te ter tido na minha vida e por ter assistido, também ali, a uma coisa tão grande e forte que, ao lado da decrepitude da morte não conseguiu quebrar. E derreti com esse amor.