(a propósito do acordar consciências…)
Estou a ler um livro (Trevor Noah, Sou um crime, Nascer e crescer no Apartheid, editora Tinta da China) que é o relato da vida de um comediante, apresentador, locutor e ator sul-africano. Atualmente é apresentador de um programa televisivo com grande audiência nos Estados Unidos e nasceu em 1984, na África do Sul. Tem portanto, 38 anos. Na altura em que nasceu, devido ao regime político vigente, o Apartheid, eram proibidas por lei “as relações carnais entre europeus e nativos”, sendo sujeitos a pena de prisão todos aqueles/aquelas que as transgredissem. Os seus Pais (mãe negra e pai branco), primeiras pessoas e sujeitos dessa transgressão, eram então, à luz dessa lei, autores de um crime e ele, mestiço, rosto visível de uma miscigenação considerada, à época, proibida e execrável.
O livro que está muito bem escrito, tem uma narrativa fácil e prende rapidamente, tem tido um efeito de “bofetada sem mão” para mim e isto por muitos motivos: um regime político existente há tão pouco tempo (sim, há tão pouco tempo…), uma realidade tão próxima que deixou tantas marcas, um relato na primeira pessoa, uma nação grandiosa, com tanta miscelânea de etnias, cores, tradições e história, o peso todo que essa história teve na vida de milhares e milhares e de gerações e gerações. E este miúdo, ali, sem um lado certo, com um pedacinho de um lado e um pedacinho de outro. A viver no meio da arena. E a riqueza que isso pode ser e o potencial de crescimento que lhe deu e que ele reconheceu, à posteriori.
Não pretendo que esta minha reflexão seja uma publicidade ao livro. Ele, o livro, não precisará disso e eu não tenho essa pretensão. Agora, o tema do racismo que lhe está subjacente, sim. Deve fazer alarde para a urgência de não nos esquecermos do que é execrável na nossa História coletiva, mesmo que vejamos por todo o lado, a várias escalas, cópias teimosas de tudo o que é mau e que já nos devia ter feito aprender. É que, mesmo que já tenhamos esta sensação de “bofetada sem mão” quando falamos de outros períodos da História que não este, podemos reforçar que os livros, os filmes, as pinturas, as músicas, têm a beleza de, através da arte que lhes é própria, nos darem sempre uma mensagem, uma-qualquer-coisa que toca forte cá bem fundo, fazendo ressoar uma vozinha interior de deleite, admiração, contemplação, primeiro, mas também (e às vezes ao mesmo tempo), de alarme, de alerta para tudo o que não queremos/devemos repetir. E mesmo que essa vozinha interior seja ténue e quase inaudível, ela está lá, como um “grilo do Pinóquio” teimoso, a trazer-nos para a frente os princípios de uma consciência, baseados em ideais de igualdade entre todos os homens, que nunca se poderão cingir à cor da pele, neste caso.
Não sei se todos os miúdos nas escolas sabem o que foi o Apartheid, ou no caso de saberem, se imaginam a dimensão que teve. Talvez se lhes pudessem propor livros destes, quem sabe? Talvez a arte, em todas as suas formas possa ser mais usada, vista, discutida, partilhada, para fazer ecoar as vozinhas ténues de cada um e, à boleia do deleite, admiração e consciencialização, os “grilos de Pinóquio” nos fazerem conhecer e acordar. Ficaria feliz se assim fosse. É que um bom livro, uma boa história, música, filme, pintura, dança, ou qualquer outra forma de arte, pode ser uma boleia extraordinária, para acordar consciências e não só.