Duas pinturas do bispo D. Jerónimo Osório, cuja representação se desconhecia, foram descobertas no Algarve em fevereiro deste ano em muito mau estado de conservação e integraram agora a galeria dos bispos no Paço Episcopal de Faro, depois de restauradas.

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Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Os retratos do bispo que em 1577 concretizou a mudança da sede episcopal de Silves para Faro estavam na posse de um particular que os terá recebido no contexto de uma herança de um tio e contactou o investigador Nuno Campos Inácio quando descobriu o primeiro porque “queria ter uma ideia de quanto é que poderia valer”.

“Presumo que seria para venda”, admitiu ao Folha do Domingo o investigador algarvio que, ao aperceber-se do que se tratava, contactou o padre Mário de Sousa, sacerdote da Diocese do Algarve, para aferir do seu interesse na aquisição da pintura com data inscrita de 1577. “O interesse era que a tela ficasse na diocese”, explicou ao Folha do Domingo o sacerdote, que ficou surpreendido com a casualidade.

Ao saber da vontade da Igreja na obtenção da obra, o proprietário, que já tinha sido até paroquiano do sacerdote, manifestou então o desejo de a oferecer.

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Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

A doação acabou por incluir uma segunda tela, que será ainda mais antiga, encontrada posteriormente também entre os bens herdados. A primeira pintura encontrada – um óleo sobre tela com aproximadamente 1,60m de altura e cerca de 1m de largura – retrata o antigo bispo de corpo inteiro, em pé, com casula, anel, báculo e mitra, com a inscrição ‘HIERONYMUS OSORIUS ALGARBIENSIS EPISCOPUS (Jerónimo Osório, bispo do Algarve)’ e o seu brasão de armas. Na segunda pintura, mais pequena, o bispo é retratado, de batina, sentado à secretária a escrever e com a inscrição ‘HIERONYMUS OSORIUS SYLVENSIS EPISCOPUS (Jerónimo Osório, bispo de Silves)’.

“Nos quadros – realizados provavelmente em épocas diferentes mas próximas – apercebemo-nos de que a pessoa retratada é a mesma”, constata Nuno Campos Inácio.

Também o historiador Marco Sousa Santos, que analisou a primeira pintura descoberta antes de ser restaurada, destaca em parecer técnico sobre a obra, que “os traços de individualidade que se reconhecem nas feições do retratado, sugerindo que não se trata de uma figura estilizada (imaginada) mas da representação de um indivíduo em particular, parecem corroborar a hipótese de estarmos perante um retrato minimamente fidedigno e, nesse sentido, provavelmente executado em vida de D. Jerónimo ou pouco tempo após o seu desaparecimento físico”.

No documento, o mestre em História da Arte refere mesmo que “no que diz respeito à identificação do retratado, não parece haver lugar a dúvidas”. “Trata-se de um retrato de D. Jerónimo Osório (1506-1580), prelado que se manteve à frente da diocese algarvia entre 1564 e 1580 (concretizando em 1577 a mudança da sede do bispado de Silves para Faro), homem erudito e um dos principais nomes do humanismo cristão do Portugal de Quinhentos”, escreve.

O historiador acrescenta que a reforçar a identidade do retratado surge no canto superior esquerdo da pintura as armas de D. Jerónimo Osório, “exatamente como surgem representadas em obras impressas” da sua autoria, por exemplo no “frontispício da obra ‘Hieronymi Osorii Lusitani De gloria’, dada à estampa em 1568”.

Ao Folha do Domingo, Marco Sousa Santos explicou que, por se tratar de “uma edição tardia”, “a maior parte dos heraldistas duvidava da veracidade da representação”. “Achavam que se tinham limitado a colocar as armas atribuídas à família Osório, sem saber se D. Jerónimo as tinha utilizado ou não. Porém, este retrato veio provar que a representação estava correta”, sustenta.

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Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

O especialista diz ainda não ver “qualquer motivo para duvidar da datação”. “Antes pelo contrário, há pormenores do desenho e do próprio suporte que corroboram a hipótese de se tratar de uma obra pintada no último quartel do século XVI ou porventura nos primeiros anos do século XVII”. “Em todo o caso, a questão cronológica só poderá vir a ser mais solidamente estabelecida através da análise laboratorial da tela e dos pigmentos”, ressalva.

Relativamente à segunda tela descoberta, da qual só ainda viu fotografias, Marco Sousa Santos acredita também não haver motivo de dúvida em relação à época de execução e diz ser “a que apresenta maior qualidade em termos do desenho e da técnica”. O historiador diz serem “duas peças magníficas e que constituem a descoberta da década para a história da arte no Algarve”.

Marco Sousa Santos realça também a importância do achado para a história da própria Diocese do Algarve. “Para começar, são as únicas representações que se conhecem de D. Jerónimo Osório, figura de primeira linha do panorama cultural português da centúria de quinhentos. Depois, são dois retratos que marcam um momento fundamental da história da diocese algarvia. D. Jerónimo foi o último bispo de Silves e o primeiro bispo do Algarve e cada um destes retratos marca uma dessas realidades. O mais antigo assinala a chegada do bispo ao Algarve e o outro a sua transferência de Silves para Faro. Mais do que pelo valor artístico, que existe (apesar de não ser extraordinário) estas peças valem pelo valor histórico e simbólico que têm”, sublinha.

O historiador refere que “a respeito da identidade dos responsáveis pela encomenda e pela execução desta obra, pouco se pode, para já, avançar”. “À partida parece lícito admitir que este retrato foi encomendado pelo próprio D. Jerónimo Osório ou, em alternativa, por um dos sucessores. Em qualquer dos casos, parece admissível que esta representação do bispo de Quinhentos se tenha executado para integrar uma galeria dos prelados da diocese que terá existido na cidade de Faro (como existiram noutras sedes de bispado e arcebispado) e de que apenas chegaram até nós alguns exemplares mais tardios”, sustenta.

Sousa Santos diz que “no que respeita à autoria deste retrato, o mais provável é que se trate de um retrato executado por um pintor ou oficina da esfera regional”, não obstante, em algumas zonas do retrato, como a do rosto, ser “possível vislumbrar um traço seguro e próprio de um artista com domínio das técnicas de pintura”.

Relativamente ao avançado estado de degradação, o historiador ressalva que “apesar da flagrante (e alarmante) fragilidade” da tela, que apresentava “numerosos remendos na parte posterior e margens em avançado estado de deterioração”, a “camada pictórica do retrato propriamente dito” encontrava-se “razoavelmente bem preservada” e não apresentava “rasgões, furos ou lacunas significativas”.

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Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

As telas foram recuperadas na oficina, sedeada no concelho de Olhão, do restaurador José Manuel Domingos, que trabalhou com o falecido historiador José António Pinheiro e Rosa no Museu Municipal de Faro e restaurou inúmeras pinturas no Algarve, entre as quais, nos últimos anos, as da igreja matriz de Portimão.

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Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

A entrega das pinturas no Paço Episcopal, que entretanto já integram a exposição patente ao público, ocorreu no passado dia 17 deste mês, no âmbito da celebração do aniversário da dedicação da catedral de Faro, que anualmente é assinalado no dia 19 de julho, mas inicialmente estava prevista uma apresentação pública das obras.

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Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

Nuno Campos Inácio, que é também genealogista e escritor, explicou que a descoberta das telas motivou a ideia de um projeto que não chegou a ser realizado por causa da situação provocada pela pandemia. “A nossa ideia era fazer uma obra, revisitando o D. Jerónimo. Não conseguimos ter o trabalho, mas ele será feito. Será um trabalho que provavelmente para o ano poderemos apresentar. Não só o estudo dos quadros, mas também outros aspetos da vida e obra de D. Jerónimo”, adiantou, considerando o antigo bispo do Algarve “um dos maiores génios portugueses”.

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Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

A professora catedrática da Universidade de Coimbra Nair Castro Soares, em conferência realizada em 2012 em Silves, lembrou que o bispo teólogo, filósofo, moralista e exegeta estudou nas melhores escolas do seu tempo, tendo passado por Salamanca, Paris, Bolonha e Coimbra, onde viria a lecionar.

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Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

A especialista na vida e obra de D. Jerónimo Osório lembrou que o bispo estudou Teologia, Filosofia e as línguas clássicas, tendo-se notabilizado pela sua capacidade e conhecimento do Latim, – língua que usou para escrever as suas obras – e do Hebreu. Humanista de vulto, revelou-se, conforme salientou Nair Castro Soares, um fervoroso defensor da Igreja e da sua unidade, sendo fortemente contra a Reforma protestante. Paladino dos valores da justiça e da verdadeira nobreza, soube, enquanto bispo de Silves, ajudar as populações, criando locais de armazenamento de cereais, bolsas de estudo para ajudar os mais pobres no estudo das línguas clássicas e distribuindo esmolas e comida aos mais pobres.

O historiador Teodomiro Neto também destaca o bispo como “reconhecido latinista, não só de Portugal, como da Europa do Renascimento”. “Jerónimo da Fonseca Osório foi o novilatino português que alcançou a maior reputação europeia”, escreveu, classificando-o como “um Homem culto do seu século, pelas suas obras internas, dirigidas aos mais altos dignatários do reino, muito crítico, à ignorância da maioria pelos seus livros editados no estrangeiro; pela sua posição de homem honesto e patriota, perante o perigo da ameaça pela perda da nacionalidade, o que viria a acontecer, em Alcácer-Quibir”.