Não tinha quase vida própria. Vivia em função do filho. Tudo girava à sua volta, tudo se resumia àquilo que ele gostava de fazer e aos sítios onde tinha de ir e às ajudas que tinha de lhe prestar. Fazia qualquer coisinha para si, só nos intervalos das logísticas do filho e mesmo assim, nunca em plenitude, mas de modo afogueado, de fugida e sempre com ele como prioridade. E isto, anos e anos e anos e fases e fases e fases.
Vivia um casamento longo, aparentemente tranquilo, mas com um não-sei-o-quê que se percebia de apático, sem vida, sem chama, mesmo que não se pudesse quantificar, ou qualificar com mais pormenor. Cheirava-se o vazio da sua vida, apesar da doçura que tinha para com os outros, da solicitude e educação que mostrava, da organização e brio profissional.
Um dia o filho deixa a casa, o vazio instala-se, as horas não passam nem têm propósito e o reflexo que lhe é dado a ver, dia-a-dia é o de si próprio, de alguém que se esqueceu de si a um canto esquecido e de uma solidão enorme que enche o espaço todo. A aparente tranquilidade do casamento desvanece como um castelo de cartas, ao embater naquela solidão tremenda de duas pessoas sós que vivem juntas e, num grito de Ipiranga possante, escolhe reinventar-se e renascer para uma vida que agora escolheu ter, acompanhado de si, das suas escolhas, dos seus gostos e de uma identidade que redescobriu, pois sempre esteve lá, escondida, embora viva.
Por isso defendo que os filhos e os maridos/mulheres/companheiros/companheiras/ideais/empregos/trabalhos/ o que quer que seja que nos preencha, não nos pode substituir. A nós próprios. À nossa essência mais profunda que determina gostos e prioridades, opiniões e maneiras de estar. Essa identidade não colidirá nunca com outros amores que enchem a vida, são magnânimos e eternos, completam-nos e estruturam, mas não podem substituir nunca o amor próprio, aquele que nos faz gostar de nós em primeiro lugar, não numa perspetiva egoísta, mas numa perspetiva de respeito pelo que somos e consciência profunda de que só assim, poderemos amar outros bem e deixarmo-nos amar também.