Getúlio Alexandre Correia Bica
Filho de pai messinense e de mãe louletana, Getúlio Alexandre Correia Bica, de 44 anos, nasceu a 8 de maio de 1979 em Ferreiras, concelho de Albufeira, onde os pais moravam. Embora tivesse sido batizado com sete meses, a 25 de dezembro daquele ano, a iniciação cristã não teve continuidade e não mais frequentou a Igreja até aos 12 anos, altura em que foi morar com os pais para o centro de Ferreiras, a cerca de um quilómetro da escola primária onde a comunidade católica celebrava a fé. A primeira Eucaristia em que participou na cantina da escola deixou-o rendido. “Foi uma celebração animada, com uma palavra que fazia sentido e que me preencheu”, recorda, explicando ao Folha do Domingo que aquele sentimento fez com que não deixasse mais de participar e motivou-o a inscrever-se na catequese. Convidado pelo pároco para ser acólito, começou também a fazer parte daquele grupo de colaboradores da comunidade. Após um ou dois anos de catequese fez a Primeira Comunhão, mais tarde integrou o grupo de jovens e recebeu o Crisma no ano 2000, com 21 anos, na recém-inaugurada igreja da nova paróquia de Ferreiras, desmembrada da paróquia de Albufeira. Na altura já trabalhava como carteiro. Depois dos correios, trabalhou numa empresa de aluguer de máquinas para trabalhos pesados e num empreendimento turístico como aprendiz de jardineiro. Realizou o curso de jardinagem e gestão de espaços verdes no Centro de Formação Profissional de Faro, no Areal Gordo, porque queria estabelecer-se profissionalmente naquela área por conta própria. Foi estagiar para outro grande empreendimento turístico e, depois do estágio, já com maquinaria para iniciar a atividade, realizou alguns trabalhos pesados que despoletaram uma inflamação na anca relacionada com outro problema grave de saúde que tinha tido aos 16 anos. Nesse final da adolescência tivera de deixar o atletismo devido às dores que surgiram. O diagnóstico confirmou tratar-se de um tumor no interior do fémur que teve de ser retirado, mas as cirurgias deixaram-lhe a perna intervencionada com menos dois centímetros do que a outra. Recuperado, algum tempo depois, das novas cirurgias que corrigiram o problema, procurou então um trabalho adequado à sua condição física e realizou o curso de vigilante, tendo feito formação numa empresa no setor da segurança privada, pela qual começou em 2004 a trabalhar na portaria do empreendimento turístico onde antes aprendera jardinagem. Ali se manteve até decidir entrar para o Seminário de Faro em 2013. Agora que está prestes a ser ordenado sacerdote, agradece à sua família, às comunidades por onde passou, de modo particular à de origem — São José de Ferreiras —, mas também à de Nossa Senhora de Fátima, em Évora, e às de Santa Bárbara de Nexe e de São Martinho de Estoi, onde tem estagiado. Também aos Seminários de Faro e de Évora, ao Instituto Superior de Teologia de Évora, ao monsenhor cónego José Pedro Martins e ao diácono Luís Galante por todo o acompanhamento, e principalmente, ao seu atual pároco, o padre Pedro Manuel, “que tem feito tudo, disponibilizando-se com grande alegria e grande vontade de viver este momento, participar e colaborar em tudo o que faz falta”. |
Desde os 12 anos que nunca mais deixaste a tua comunidade de Ferreiras?
Não, mantive-me sempre na Igreja. A comunidade paroquial é um dos pilares da minha vocação. O outro é o pároco e o terceiro é a família. A minha vocação tem três pilares.
Pertenci ao grupo de acólitos, fui catequista como ajudante irmã Gorete [Pereira, salesiana] durante três anos, depois peguei num grupo a partir do ano 2000 e acompanhei-os até ao Crisma. Foram crismados no ano 2013. Mantive-me sempre a fazer catequese com um grupo e durante um período com dois.
“A comunidade paroquial é um dos pilares da minha vocação. O outro é o pároco e o terceiro é a família.
E participaste em algumas Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) pelo caminho.
Sim, a de Colónia, em 2005, foi a primeira. Era para ter ido à de Sidney [2008], mas não fui porque ainda não tinha sido resolvido o problema de saúde. Fui em 2011 à de Madrid e em 2013 à do Rio de Janeiro. Esta última marcou a mudança da minha vida. Até ali trabalhava, embora já viesse uns 8 ou 9 meses antes a ser acompanhado espiritualmente. Vinha periodicamente ao Seminário de Faro falar com o padre Pedro Manuel, da equipa formadora. Antes da JMJ deixei a empresa de sobreaviso de que quando voltasse iria despedir-me. E assim foi. Ainda a minha família não sabia. Cheguei a Portugal, entreguei a carta de despedimento e só contei à minha família quando entrei no Seminário. Na empresa de segurança, por estar na portaria, lidava com pessoas, sentia-me bem, mas sentia que podia dar mais de mim. Entretanto, também namorei durante quase quatro anos, mas faltava-me algo.
As JMJ tiveram impacto, fizeram-me acordar um pouco mais. Outro grande impacto foi o falecimento do meu pai. Fez com que assentasse ainda mais os pés na terra.
“esta imagem ficou sempre comigo: colocaram um mapa da Diocese do Algarve e mostraram todas as paróquias em risco de ficar sem sacerdote
Essa necessidade de perceber o que é que faltava foi o que te levou a pedir acompanhamento espiritual?
Também. Uns anos antes, em 2002/2003, cheguei a frequentar o Pré-Seminário. Trazia colegas de Ferreiras, entre eles o Vasco que depois foi ordenado sacerdote, o primeiro da paróquia de São José de Ferreiras. Mas depois não prossegui porque achei que não era para mim. O reitor do Seminário na altura era o senhor padre Mário de Sousa. Lembro-me de uma vez — e esta imagem ficou sempre comigo — em que colocaram um mapa da Diocese do Algarve e mostraram todas as paróquias em risco de ficar sem sacerdote, privando as pessoas do acesso à comunhão e de receberem Cristo. Senti-me, então, interpelado a dar algo de mim.
Mas quando sentiste a necessidade de pedir acompanhamento já punhas a hipótese de poderes vir a entrar no Seminário?
Sim. Até porque tinha 33 anos e a idade começava a avançar. Tinha de experimentar e perceber se era por ali. Se percebesse que não era, não avançaria. Mas fui acompanhado, reuniram-se as condições e entrei no Seminário…
Quando dizes reuniram-se as condições, estás a falar de quê?
Do aval da equipa formadora do Seminário e também do meu pároco.
Fui depois completar estudos. Tinha frequentado o curso de Arte e Design na Escola Tomás Cabreira, mas não tinha completado o 12º ano, o que acabou por acontecer através do programa ‘Novas Oportunidades’.
Dizes que a comunidade foi um dos pilares. Para além da importância do pároco, que já referiste, a comunidade das irmãs salesianas, que existia na altura na tua paróquia, também foi um apoio importante?
Muito importante. Assim como o testemunho das restantes pessoas da comunidade. Foram todos esses testemunhos que ajudaram a seguir em frente para tentar perceber o meu caminho e entregar-me.
“A JMJ do Rio de Janeiro constituiu o ponto de viragem porque antes dela eu tinha um estilo de vida e após o encontro passei a ter outro, completamente diferente
E o peso da participação nas JMJ nessa decisão de entrar no Seminário, qual foi? Dizes que na JMJ do Rio de Janeiro decidiste…
Eu já tinha decidido antes, só que essa JMJ constituiu o ponto de viragem porque antes dela eu tinha um estilo de vida e após o encontro passei a ter outro, completamente diferente.
Então a decisão de entrar no Seminário não foi tomada nessa JMJ?
Não, foi antes.
E o peso da participação nas JMJ nesse teu discernimento vocacional, qual foi?
As JMJ ajudaram-me a compreender que havia muitas pessoas na mesma situação do que eu, que procuram um sentido para a vida, o tal preenchimento de uma necessidade que senti quando fui pela primeira vez à Eucaristia em Ferreiras. Nas JMJ pude também compreender o sentido universal da união, da comunhão através da afluência de jovens ao encontro da fé, de várias culturas, formas de estar na vida, mas com um sentido profundo de fé e de religiosidade.
Uma das grandes experiências que vivi nas JMJ foi o silêncio. Quando o Santo Padre pedia para se fazer silêncio, deixava de se ouvir barulho e fazia-se mesmo silêncio.
Chegaste a partilhar que essa participação e os testemunhos de fé que lá viveste contribuíram, em grande parte, para chegares onde chegaste e para solidificar a tua fé. Portanto, as JMJ ajudaram no sentido de perceber que o teu caminho era mesmo por aqui?
Sim. Ajudaram neste sentido de procura e também de doação. Porque nos países por onde passava, sentia-me acolhido. Fora do meu próprio meio, sentia-me em casa. Constatei que a vivência da fé não era só no Algarve, nas Ferreiras, mas tem uma amplitude universal. É algo transversal a todo o ser humano. Essa vivência também me ajudou a continuar a explorar a dimensão interior que não conseguimos compreender logo, mas que, pouco a pouco, ao longo da vida e da caminhada que cada um faz, vai sendo descoberta.
Pode-se então dizer que as JMJ foram marcos nesta tua caminhada?
Sim, foram.
E a recente JMJ de Lisboa, em que também pudeste participar, como é que a viveste? Que sentido teve?
Há 10 anos, na JMJ do Rio de Janeiro, dizia que era a minha última participação num encontro daqueles. Mas passados 10 anos, e realizando-se esta edição no meu próprio país, ainda pude participar como diácono. Foi uma experiência completamente diferente…
Diferente em que sentido?
Diferente porque já não participei como jovem. Fui como responsável de um pequeno grupo das paróquias de Santa Bárbara de Nexe e de Estoi e também tive oportunidade, como clérigo, de participar nas celebrações, ainda que distante porque não conseguíamos estar no altar.
A mudança da condição de leigo, em que na altura ainda procuravas o caminho, para a de diácono rumo ao sacerdócio, já com esse percurso confirmado, trouxe um sentimento diferente a essa participação?
O sentimento é diferente e o próprio sentido da responsabilidade também…
Consegues ver, quase numa dimensão profética, as JMJ a marcarem de alguma forma a tua caminhada vocacional e esta de Lisboa já como a confirmação desse caminho?
Sim. As JMJ ajudam na caminhada e, principalmente na minha, ajudaram a compreender que há uma grande procura e que temos de dar respostas. Os jovens são mesmo o futuro e a garantia da continuidade dos valores passa por os transmitirmos a eles. As JMJ ajudam a perceber que estamos para eles e para todas as outras pessoas. Se não transmitirmos o mandamento do amor que Cristo nos deixou, podemos deixar de ter a paz que o Cristianismo promove.
“O Convívio Fraterno também foi uma experiência muito forte porque mexeu muito com os sentimentos. Também o falecimento do meu pai.
Para além desses momentos marcantes na tua caminhada que foram as JMJ, consegues identificar outras experiências que tenhas vivido que tenham sido igualmente marcos no sentido de continuares por esta via?
O Convívio Fraterno nº 829 em 2001, após ter sido crismado, também foi uma experiência muito forte porque mexeu muito com os sentimentos.
Também o falecimento do meu pai, como já referi. Foi a fé, uma vez mais, a vir ao de cima para dar sentido à situação…
…o que muitas vezes não acontece, porque há pessoas que se revoltam e acabam por se afastar. Mas no teu caso, aconteceu o contrário.
Sim. Na minha caminhada cristã — com os tais três pilares a funcionar —, aquele acontecimento fez com que me aproximasse mais e com que tomasse decisões. Chegou uma altura em que tive de avançar para analisar se era por aqui ou não e para mais tarde não ter de me culpabilizar por não ter dado o passo.
Dizes que depois da JMJ no Rio de Janeiro decidiste entrar no Seminário, mas a tua família ainda não sabia…
Sim, só soube uma semana ou 15 dias antes de entrar no Seminário.
Mas já vinham a aperceber-se que poderia acontecer?
Não.
Então foi uma surpresa?
Sim, a minha mãe ia caindo para o lado [risos].
E como é que reagiram?
A minha mãe, no início, não queria acreditar, mas depois aceitou bem, assim como a minha restante família, a minha irmã, os meus sobrinhos…
A tua irmã também frequentava a paróquia de Ferreiras.
Sim, era catequista.
Mas, ainda assim, foram apanhados de surpresa?
Sim, completamente. Nem faziam ideia de tal coisa.
“A entrega ao serviço das comunidades deu-me razões e justificações de que a missão é por aqui
E quando é que tiveste a certeza de que tinhas feito a opção correta e que estavas mesmo no caminho certo?
Foi durante a caminhada no Seminário, também nas paróquias onde fiz serviço pastoral, tanto em Évora, na paróquia de Nossa Senhora de Fátima e também no grupo ‘Fé e Luz’, constituído por pessoas com dificuldades motoras, como também aqui no estágio pastoral nas paróquias de Santa Barbara e de Estoi. Toda essa entrega ao serviço das comunidades deu-me razões e justificações de que a missão é por aqui porque é mais aquilo que se recebe do que aquilo que se dá.
Mas apesar dessas certezas que foste adquirindo ao longo do percurso, tiveste momentos de interrogação?
Sim, sim. É normal. Não nos podemos fixar só nesses momentos. Temos de analisar sempre o percurso todo para ver as razões que nos fizeram seguir por este caminho.
Neste momento está a decorrer a XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, depois de um percurso inédito de auscultação popular. Estamos a viver um momento de complexidade, a redescobrir uma forma nova de ser Igreja, a percorrer caminhos novos em conjunto. Como é que achas esta realidade concreta irá influenciar o exercício do teu ministério?
A mensagem é sempre atual e sempre a de Cristo: «Ide e fazei discípulos, ide e batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo». Este é que é o sentido profundo da vocação. Em cada momento da história importa recuperar o sentido profundo da missão, do fazer discípulos, do transmitir a boa nova, do fazer sinodalidade. É este sentido de missão que faz a sinodalidade segundo a qual eu, tu e cada um de nós temos de ser promotores da tal mensagem que é uma mensagem simples, o mandamento do amor — «amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» —, amando em primeiro lugar a Deus.
Mas achas que desta reflexão sairá a redescoberta de uma nova forma de exercer esse ministério do amor, uma nova forma de ser padre?
Não diria uma nova forma de ser padre. Ser padre tem de assentar sempre nesta base evangélica do ir em missão e fazer discípulos, transmitindo a boa nova. Temo-nos afastado um pouco deste sentido missionário.
No seio da Igreja nunca se falou tanto como hoje em corresponsabilidade no trabalho pastoral. Como é que esperas conseguir essa corresponsabilidade?
A nossa diocese já está a mudar um pouco a organização pastoral, de vigararias para regiões e centros evangelizadores. Isso é já uma busca pela corresponsabilidade de todos. O trabalho não pode ser só focado no ministério do sacerdote. Qualquer leigo batizado tem também a responsabilidade da missão da evangelização. Então, há que, cada vez mais, reforçar este sentido comunitário e o Concílio Vaticano II impele a que a comunidade seja participativa e que, cada vez mais, haja uma consciencialização da necessidade da participação de todos na vida da fé. Temos de ser responsáveis, cada um na sua área, segundo a sua circunstância. Não podem ser só depositadas as responsabilidades e os deveres no sacerdote. Tem de haver uma distribuição e o sacerdote até pode ser aquele que distribui, mas depois também tem outros que estão a distribuir e assim sucessivamente para que possamos chegar a todos.
“Há muitas pessoas que, só pelo olhar, já denunciam uma falta de esperança.
Que aspeto gostarias de valorizar no exercício do teu ministério sacerdotal?
A proximidade às pessoas para levar a esperança àquelas que já a perderam. Há muitas pessoas que, só pelo olhar, já denunciam uma falta de esperança. Gostava de ir ao encontro, estar presente e poder ajudar neste sentido de dar esperança.
Porque achas que essa é hoje uma dimensão que está muito em falta?
Sim. Tem a ver um pouco com o que nos é oferecido. Hoje é tudo muito mediático, muito palpável, muito visual e isso faz com que nos agarremos mais às coisas visíveis do que às invisíveis. São Paulo diz que devemos olhar mais às invisíveis e não nos deter tanto nas visíveis.
Qual achas que vai ser o maior desafio que encontrarás depois de ordenado?
Isso só poderei saber depois de ser ordenado [risos].
Que mensagem deixarias a quem possa estar na mesma situação em que estavas há alguns anos, sentindo-se interpelado a seguir o caminho da consagração a Deus?
Que não deve deixar passar a oportunidade e deve, pelo menos, fazer uma experiência vocacional. Há-que fazer essa experiência, caso contrário, mais tarde, a consciência pode-nos dizer que devíamos ter arriscado. E depois até nos podemos culpabilizar por não ter feito nada. Depois, se não for esse o caminho, os sinais também serão dados. Mas, caso avance, deve levar sempre na bagagem toda a vivência e experiência anterior, ou seja, aquilo que o levou a dar esse passo e tomar essa atitude. Essa experiência tem de acompanhar sempre o peregrino.