Vivemos num tempo, no qual o que dizemos e que o defendemos é escrutinado ao milímetro. No caso de um clérigo, o que é dito é duplamente escrutinado e sujeito a avaliação, nada isenta, de quem nos ouve. Tal facto só aumenta a pressão psicológica para quem tem de falar em público e pode transformar-se rapidamente num tormento e não numa rotina.

Assim, bem-aventurada Inteligência Artificial (IA) que, através de plataformas como o ChatGPT, ou GPT-4, ou outras quaisquer formas que possa assumir, nos escreve tratados, homilias, catequeses, etc.. Nesses textos, tudo é dito de forma correta, assertiva, educada, de acordo com a doutrina católica, sem absoluta margem de erro e com enorme precisão.

E digo-o, pois, há uns dias, para não ser controverso e, ao invés, absolutamente isento no que escreveria e diria, decidi pedir ao ChatGPT para me redigir um artigo sobre um tema de absoluta atualidade na vida do nosso país. Fi-lo do modo seguinte: «Preciso de um artigo, em que se dê uma visão cristã do projeto Mais Habitação, do atual governo português». E a resposta chegou em segundos, equilibrada e desobrigada, mais do que qualquer ser humano com ideologia e visão política, enviesada de esquerda ou direita, seria capaz de fazer. Rezava do seguinte modo:

«O Projeto Mais Habitação do atual governo português é uma iniciativa que visa promover o acesso à habitação digna para todos os cidadãos portugueses, especialmente para aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade social. A iniciativa é louvável e pode ser vista sob uma perspetiva cristã como um exemplo de justiça social e amor ao próximo. A Bíblia ensina que a habitação é um direito básico e fundamental de todos os seres humanos. O livro de Ezequiel, por exemplo, mostra que Deus se preocupa com a habitação de seu povo e que Ele deseja que todos tenham um lugar seguro e confortável para viver. Além disso, a Bíblia também nos ensina que devemos amar nosso próximo como a nós mesmos e ajudar aqueles que estão em necessidade. Nesse sentido, o Projeto Mais Habitação é uma resposta prática e eficaz às necessidades daqueles que estão em situação de vulnerabilidade social. Ao promover o acesso à habitação digna, o governo está ajudando a garantir que esses indivíduos tenham um lugar seguro e confortável para viver, onde possam se sentir protegidos e acolhidos. No entanto, como cristãos, também precisamos estar cientes das implicações éticas e morais do Projeto Mais Habitação. Embora a iniciativa seja positiva, é importante garantir que ela seja realizada de maneira justa e equitativa. Isso significa que o acesso à habitação não deve ser dado apenas aos que estão em situação de vulnerabilidade social, mas também deve ser garantido a todos aqueles que precisam. Além disso, é importante garantir que a iniciativa não prejudique aqueles que já possuem habitação ou que não se enquadram nos critérios para o acesso à habitação social. Isso significa que o governo deve encontrar um equilíbrio entre todos».

Tudo o que é dito é absolutamente verdadeiro, sensato, imparcial e sem erros, escrito num português brasileiro, que é o que sempre aparece nestas ferramentas. Um humano só faria pior. Mas este exercício, que me revelou tanta certeza, tanta correção, tanta isenção, só me fez pensar e concluir que continuo a preferir o desacordo humano, ao acerto da IA. É que o desacerto humano implica várias dimensões que não sinto presentes neste instrumento: a capacidade de pensar, de refletir, de mobilizar os nossos conhecimentos e sentimentos, para produzir uma opinião, mais ou menos fundamentada, mas uma opinião que sai do nosso livre-arbítrio e intelecto, dons de Deus, que nos criou para, à Sua imagem e semelhança, termos capacidades criadoras, inteligência própria. A outra dimensão é a da liberdade, que me parece da mais absoluta importância em todos os domínios da nossa vida e esse “livre pensamento” (de que falava na sua poesia David Mourão Ferreira), se não florescer, se não for construído no interior de cada um de nós, modelado pelas nossas vivências, emoções, memórias, aprendizagens, para que servirá? Discordar ou concordar são atos de liberdade e de utilização do nosso intelecto. Ainda que às vezes pudessem ser feitos de forma mais educada, profunda nos argumentos, razoável na forma e conteúdo, de modo a aliviar a tal ansiedade que sentimos por ter de falar em público, por ter de escrever, por ter de nos manifestar, como salientava ao princípio. Enfim, são manias minhas. E tenho como certo que havemos de louvar e ter saudade do tempo em que havia quem discordasse de nós.