O Movimento dos Focolares vive o seu carisma da unidade como um “grande desafio” naquela zona

Manuela Martins, leiga consagrada da comunidade algarvia do Movimento dos Focolares que viveu e trabalhou 26 anos em Israel, adverte que a questão que está na base do conflito entre aquele país e a Palestina é de natureza política e não religiosa.

“É muito fácil para nós, ocidentais, interpretarmos como uma questão religiosa que não é”, alerta, considerando que “o problema ali é que há uma terra para dois povos”. Manuela Martins, que também aponta como solução para o conflito a criação de dois estados independentes, lamenta que os Acordos de Oslo (Noruega) pela paz, em 1993, entre o primeiro-ministro israelita Isaac Rabin e o presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) Yasser Arafat, mediados pelos EUA, não tenham sido consequentes para a implementação efetiva de uma autoridade palestiniana e que a ocupação se tenha mantido.

Não obstante ter ali vivido desde o final de 1984 até ao início de 2011 e assistido ao surgir das duas intifadas, a focolarina pensa ser possível uma convivência pacífica entre israelitas, sejam judeus ou cristãos, e palestinianos, sejam muçulmanos ou cristãos. Essa certeza é sustentada também por outras vivências que testemunhou durante o tempo em que viveu naquele território.

Manuela Martins – que viveu na comunidade dos focolares na parte árabe de Jerusalém – realça que o ponto de partida para a paz terá de ser a convicção comum a muçulmanos, judeus e cristãos, e bem presente naqueles com quem se relacionou, de que “são criados à semelhança e imagem de Deus”. “Se fomos todos criados por Deus e somos todos seus filhos, somos todos irmãos”, infere, realçando que a chamada “Regra de Ouro”, presente em quase todas as religiões, decorre daquela convicção.

Manuela Martins explica que o que a Igreja procura, e concretamente o Movimento dos Focolares – que ali vive o seu carisma da unidade como um “grande desafio” – é que possam “criar relacionamentos sem preconceitos”, colocando todos em prática aquela “regra” que propõe a um cristão fazer ao outro aquilo que gostaria que ele lhe fizesse; diz a um muçulmano que não é “verdadeiro crente” até que não deseje para o outro aquilo que deseja para si mesmo; e adverte a um judeu: “aquilo que odeias para ti, não o faças ao teu semelhante”.

Evidenciando que ninguém pode optar se nasce numa família cristã, muçulmana ou judaica, aquela focolarina conta que uma das condutas que a “ajudou muito” a viver ali foi a opção de “abordar as pessoas de outras religiões sem preconceitos, sem pré-juízos” e, por isso, diz ser essencial “tentar conhecer e dar-se a conhecer” para evitar a criação de “barreiras quase intransponíveis”. “Esta decisão de viver segundo a certeza de que somos todos irmãos nos jovens é muito forte”, acrescenta, apontando à necessidade de as gerações mais novas de diferentes culturas ganharem o hábito do relacionamento e da convivência para deixarem de lado os preconceitos e perceberem que todos são iguais.

Fim de semana com participantes, cristãos, judeus e muçulmanos

Manuela Martins recorda nesse contexto a realização da atividade desportiva ‘Run4unity’, a estafeta mundial promovida anualmente pelo Movimento dos Focolares que atravessa diferentes fusos horários, protagonizada por jovens de etnias, culturas e religiões diferentes, que correm juntos em diversos lugares do planeta para testemunhar o seu compromisso com a paz e com a solidariedade. “Os nossos jovens pensaram fazer uma edição participada por todos: cristãos, muçulmanos e judeus, de Israel, de Gaza e demais territórios palestinianos. Os pais estavam um pouco apreensivos, mas eles estavam muito determinados. Foi incrível. 700 jovens encontraram-se em Haifa, no norte de Israel, incluindo muitos de Gaza e dos territórios palestinianos, que tinham conseguido obter autorizações especiais para entrarem em Israel”, conta, relatando o espanto de um dos adolescentes participantes: “«Mas eles são meninos, exatamente como nós!»”.

A atividade ‘Run4Unity’ ao longo do muro da cidade de Jerusalém
A atividade ‘Run4Unity’ em inglês, árabe e hebraico

Noutra edição do mesmo evento com cerca de 200 jovens das três religiões ao longo do muro de Jerusalém, que teve como objetivo conhecer lugares santos das três grandes religiões monoteístas – a mesquita de Omar, onde entoaram um cântico árabe; o muro das lamentações, onde se cantou um salmo; e a igreja São Pedro in Gallicantu, onde rezaram o Pai Nosso –, relata que no final do evento, alguns participantes exprimiram a sua alegria por não terem sentido qualquer diferença entre eles, pertencentes a diferentes religiões e manifestaram o desejo de “dizer ao mundo que a paz e a fraternidade é possível”. Manuela Martins acrescenta que os jovens, se encontravam em muitas outras ocasiões, conhecendo-se e tornando-se amigos, às vezes até ao ponto de prometerem que nada iria impedir a sua amizade”.

A comunidade dos focolares em oração numa Quinta-feira Santa junto à igreja São Pedro ‘in Gallicantu’
A comunidade dos focolares em oração numa Quinta-feira Santa junto à igreja São Pedro ‘in Gallicantu’

Manuela Martins refere ainda um centro de apoio à educação, implementado pela comunidade dos focolares com voluntários, criado por causa de dificuldades de acompanhamento das matérias identificadas nos alunos muçulmanos e cristãos, após um “longo período” em que estiveram impedidos de frequentar a escola.

A comunidade dos focolares em Gaza

A focolarina lamenta profundamente que “muito daquilo que se construiu de amizades, relacionamentos, de desejo de paz” se destrua rapidamente com a guerra. “Uma pessoa que sofre o ódio e a vingança que estas pessoas estão a viver, adquire traumas que jamais sairão da sua vida e só multiplicará o desejo de vingança e de ódio”, adverte, apontando à “chave do perdão”. “O mal precisa da grande força do perdão de que nós, os cristãos, devíamos ser especialistas. Jesus deu-nos essa chave do perdão”, explica, defendendo ser preciso contrapor o mal com o bem. “A solução é construir o amor”, advoga, pedindo a cada um “atos de amor” concretos e diários por terem “imediatas repercussões”.

A comunidade dos focolares em Gaza

“Temos de rezar e viver de uma maneira mesmo especial o amor”, considera, lembrando ser esse o sentimento de tantos como umas raparigas que assistiram à divisão da família com a construção do muro de segurança a meio da rua onde moravam frente a frente. “Elas, que moravam de um lado e os avós do outro, para entrarem em Jerusalém para visitá-los passaram a ter de dar uma grande volta, sair e entrar, passando o posto de controlo. Mas elas contavam como, apesar das dificuldades que passavam nesse posto, tentavam viver aqueles momentos com paciência e abertas a quem encontravam, e até mesmo aos soldados israelitas, que reconheciam como irmãos”, conta.

Não quero falar da guerra, do sofrimento que estamos a viver. Quero dizer que, à luz destes acontecimentos, alimentamos a esperança pelo facto de existirem pessoas como vocês que rezam por nós e assim dão-nos a força de não ceder ao mal, de não duvidar da misericórdia de Deus e de acreditar que o bem existe. Queremos gritar ao mundo que queremos paz, que a violência gera violência e que a nossa confiança em Deus é grande, mas se Deus nos chamar a si estejam certos de que do céu continuaremos a rezar convosco e a implorar-lhe com mais força que tenha compaixão do seu povo”, lê Manuela Martins, partilhando o recente testemunho de uma cristã, que diz não saber se ainda é viva, professora numa escola em Gaza cujos alunos são quase todos muçulmanos.

Manuela Martins considera que o ocidente pode “fazer alguma coisa”, não sendo preciso “tirar partido de ninguém”. “São todos nossos irmãos. Não preciso dizer se estou com Israel ou com a Palestina. Estou com o meu irmão qualquer que ele seja”, sublinha, defendendo que “importa implementar os direitos humanos e a reconciliação” e que, “politicamente, há muita estrada para fazer”. “No ocidente é muito difícil perceber a situação e é difícil que os governantes tenham ideias claras. Vivemos no século XXI e já não na Idade Média ou na pré-história. Tenho muita pena que neste século ainda alguém possa pensar que a autodefesa passe por destruir alguém e que os governos ocidentais não tenham procurado desde o princípio deste conflito ver o que é que se pode fazer de diferente pela via diplomática. Temos todos de pedir o cessar-fogo. Não há uma razão humana, nem política, nem religiosa, para que não se faça”, lamenta.

Crianças muçulmanas na comunidade dos focolares

Acrescentando que se “mistura muito o aspeto religioso e o político”, reconhece que, “muitas vezes, dirigentes políticos usam a religião para levar o povo a fazer o que querem” e que, por isso, nascem “movimentos que levam o povo a pensar certas coisas que dizem que é o Islão que manda fazer”. “Como o povo aspira à paz e a um território, é facilmente levado. A pessoa que não tem uma formação de base segura da própria religião pode ser levada a extremismos, fanatismos e radicalismos”, lamenta, considerando que a informação permite “distinguir o que é uma fação radical do resto” e que muitos dos que conheceu desejavam “informar-se e estudar a própria religião para viverem mais coerentemente”.

Manuela Martins nasceu, na freguesia lisboeta de Benfica, no seio de uma família “muito cristã” composta por mais sete irmãos.
Por volta dos 15 anos – envolta numa crise em que a fé deixou de fazer sentido e que a levou a deixar de acreditar em Deus – aceitou o desafio das irmãs que haviam conhecido o Movimento dos Focolares a participar numa Eucaristia animada por jovens a ele pertencentes.
Surpreendida com o testemunho de algumas jovens que, substituindo a homilia do pároco, contaram o que faziam para tentar viver a palavra de Deus, ficou marcada pela coerência do que ouvira, mas continuava, ainda assim, a não acreditar em Deus. Tendo comentado esse facto com uma focolarina, a interlocutora propôs-lhe o desafio de imaginar Jesus em que cada pessoa com quem cruzava e, ao mesmo tempo, a colocar-se no lugar de Cristo para agir com o outro do mesmo modo que Ele agiria. Esse repto não só alterou o seu relacionamento com os outros, como lhe facilitou o regresso da fé. “Houve um momento em que senti muito claramente a presença de Jesus, a certeza de que existia Deus dentro de mim”, conta, explicando que, em consequência, muitas das interrogações que tinha sobre a vida cristã se clarificaram, e a levaram a decidir-se conscientemente pela prática religiosa e a um compromisso no grupo de jovens dos Focolares.
Manuela Martins diz ter sido essa conversão que lhe permitiu aceitar emigrar aos 19 anos com a família para Brunsvique, na Alemanha, lembrando-se das palavras de Jesus: “Não é quem diz: «Senhor, Senhor que me ama, mas aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos céus»”.
Chegada àquele país, foi surpreendida por poder estudar Biologia, uma vez que 3% das vagas académicas estavam reservadas a estudantes estrangeiros. “Era mesmo uma resposta de Deus”, considera Manuela Martins que acabou por viver ali oito anos, concluindo a formação académica em Biologia com especialização em Antropologia.
O contacto permanente com a comunidade dos focolares desde que ali chegou considera ter sido “outra resposta do amor de Deus, uma experiência de profunda vivência cristã e de enriquecimento cultural e humano”. Ali amadureceu o “forte chamamento de Deus”: “doar a própria vida a Deus para levar o seu amor a muitos e contribuir para realizar o seu projeto de unidade para a família humana, segundo o testamento de Jesus de «que todos sejam um», que é o objetivo do Movimento dos Focolares”.
Seguiram dois anos em Itália na cidadela internacional dos Focolares em Loppiano, nas colinas da região da Toscana, perto de Florença, onde experimentou “uma vida comunitária muito forte com pessoas de todo mundo”. Concluindo o período de preparação com o estudo de Teologia e de Ciências Sociais, perguntaram-lhe se gostaria de integrar a comunidade dos focolares da Terra Santa.
Depois de Jerusalém, onde trabalhou também alguns anos na pesquisa científica, fez o percurso inverso. Regressou a Itália, estando um ano na Sicília, e depois voltou à Alemanha, tendo vivido mais nove anos em Frankfurt e trabalhado na pastoral dos imigrantes.
A Portugal, chegou no final do ano 2021 onde integra a comunidade algarvia dos Focolares.

Manuela Martins, da comunidade de Faro do Movimento dos Focolares, garante que “no fundo todos querem a paz” na Terra Santa