É de etnia cigana. Tem um ar dócil, mas triste. Não lhe diz nada, aquilo que por ali vai fazendo na escola. Sinto que passa os dias meio entediada, embora não perturbe e seja bem-comportada. Faz-me lembrar uma criatura qualquer selvagem que se domesticou, que se aquieta num redil e que está desejando fugir, mesmo assim. Esta descrição pictográfica demais, é a ideia que tenho quando estou com ela. Está ali, meio aborrecida, à espera que o tempo passe, sem se importar muito. Quando está comigo fala muito da família e do que faz em casa. Imagino-a a fazer tantas coisas fora dali, ou imagino o que podia fazer com ela, enquanto está ali. E não é isto, pois estamos as duas, as três talvez, ela, eu e a escola, presas num emaranhado de leis e normas e regras e imposições que nos quartam a ação, a liberdade e o sentido. Conheço todos os irmãos dela e esta, é a mais capacitada, para aquilo que a escola, com boa intenção, lhe quer oferecer. Mas um querer oferecer deve ter um recetor, sob pena de ser uma coisa meio coxa, que fica assim só pela intenção, transformando-se numa mão muito grande e muito cheia de um grandessíssimo nada, para ela e para outros, que não sendo de etnia cigana, por lá andam, meio perdidos também, deambulando em turmas e em assuntos que não lhes dizem nada, que não lhes são significativos. E é mesmo uma mão muito cheia de um grande nada, aquilo de que estamos a oferecer. Mas como estamos numa engrenagem que não para, que nos prende a todos e que tem decretos sérios, com palavras caras e conceitos universais, tenho que resignificar pequenos momentos, hipervalorizá-los, dar-lhes destaque, assim como aquele em que a ouvi recontar com correção e algum entusiasmo, episódios da obra Ulisses, estudada na sua turma. Não sei para que lhe vai servir aquilo, provavelmente para nada, mas apeteceu-me dizer-lhe que naquele momento fez uma professora um pouquinho mais feliz. Não por vê-la a contar a história com correção, mas por vê-la, por minutos, a sentir que alguém a estava a gostar de ouvir.
E é isto…