Vivemos um tempo em que as “stories” passam depressa e a História custa a ficar. E, quando a memória se apaga, crescem o preconceito e a indiferença. Saber História não é um luxo de eruditos: é condição de liberdade e escola de tolerância. Sem ela, confundimos identidade com trincheira e deixamos que o medo dite a última palavra. Com ela, reconhecemos continuidades, aprendemos a nomear as sombras (e no século passado tivemos tantas que geraram duas guerras mundiais) e iluminamos as possibilidades de encontro que outros, antes de nós, souberam construir.

O Algarve oferece-nos uma dessas lições. Durante séculos, muçulmanos, cristãos e judeus partilharam cidades e mercados, trabalharam lado a lado e encontraram formas de convivência, ainda que imperfeitas, verdade. Mas estabeleceram-se pactos que garantiram proteção e liberdade de culto, impostos que regulavam a diferença e um respeito que, em muitos momentos, foi mais forte do que as suspeitas. Aliás, respeito que gerou cooperação e partilha. Se não sabem ou não se recordam, recordo um célebre relato do grande geógrafo muçulmano, al-Idrisi, que descreveu, no século XII, as peregrinações à “Igreja dos Corvos” (ou Kanisat al-Gurab em árabe), um local sagrado, localizado no promontório de Sagres, ao qual convergiam peregrinos de todo o mundo conhecido de então, para cumprir votos, mesmo havendo uma mesquita próxima. Este centro de peregrinação esteve ativo até 1173, dispondo os viajantes de uma hospedaria (“Satio Sacra”) para o seu descanso. Não havia conflitos entre crentes, até porque Jesus é um dos mais importantes profetas do Islão. Também a tradição fala de Faro como “Santa Maria do Ocidente”, lembrando-nos que a veneração mariana, presente igualmente no Alcorão, abriu portas de entendimento. Espaços de oração mudaram de mãos ao ritmo da história e o rito moçárabe (característico do Sul da Península e resultado desta aculturação) preservou uma linguagem cristã própria, marcada por heranças visigóticas e pelo contacto com o mundo islâmico e judaico. Nada disto foi um idílio; foi trabalho paciente de vizinhança e de perceção do valor e da necessidade que temos do outro.

Importa dizê-lo com clareza: não idealizamos o passado. Houve restrições legais, sinais de discriminação, tensões e feridas. Mas houve também uma quotidianidade de respeito, de trocas culturais e científicas, de aprendizagem mútua. É esse tecido fino, tantas vezes invisível, que a História nos devolve: pessoas reais, com medos e esperanças, a construir a convivência possível. E é dessa memória que nasce a coragem para hoje defender a liberdade religiosa de todos, sem exceções. E a liberdade de ter, em qualquer lugar, a sua forma de ser um bom cidadão, um bom crente, um bom ser humano.

O presente desafia-nos. Quando se tenta calar a festa de uma comunidade ou suspender um gesto de fé, porque “não é da nossa identidade”, a História ergue-se e pergunta: que identidade é esta que precisa de apagar o outro para existir? Defender a liberdade do vizinho muçulmano, judeu ou cristão nunca diminui ninguém (recordo os santos católicos que padeceram e morreram em Auschwitz, por exemplo, muitos deles na defesa de companheiros judeus, como foi Santa Teresa Benedita da Cruz – Edith Stein e São Maximiliano Kolbe); ao invés, amplia o espaço comum.

A Igreja, quando recorda a dignidade inegociável de cada pessoa e denuncia discursos xenófobos, não faz política partidária: faz Evangelho e serviço ao bem comum. E a comunicação social tem responsabilidade neste caminho: dar palco ao que constrói, não apenas ao que divide e gera audiência. A comunicação social livre e responsável é formadora, no sentido em que nos ajuda a perceber o que se enquadra nos valores maiores da Humanidade.

Saber História é vacina contra o medo. Mostra-nos que as sociedades respiram melhor quando acolhem e dialogam e definham quando erguem muros. É também bússola para políticas de integração, para escolas que educam na pluralidade, para comunidades que fazem da hospitalidade uma marca de identidade. Até o turismo — cultural, religioso, espiritual — pode ser linguagem de paz, quando promove encontros verdadeiros e respeito pela diferença.

No fim, a escolha é simples e exigente: queremos comunidades guiadas pela desconfiança ou pela confiança? Pela exclusão ou pelo encontro? Pela amnésia ou pela memória que cura? Aprender e ensinar História — a nossa e a dos outros — não é olhar para trás com saudade, nem ignorar largos períodos dela, apenas porque não estão de acordo com o nosso pensamento; é preparar um futuro em que a liberdade de cada um se torna casa de todos. Aí, sim, reconhecemos quem somos. E honramos o mais humano que nos define. E somos anunciadores do Evangelho.